(Família da princesa Isabel. Fonte: Aventuras na História)
Numa postagem anterior deste blog, mencionamos o básico sobre o direito permanente das dinastias memoriais ao legado de seus antepassados. De certo modo, se poderia dizer direito eterno, embora eu, pessoalmente, tenha resistência em usar esse adjetivo para qualquer construção de origem humana.
Mas, enfim, dissemos ali como o Direito Nobiliário se apoia na ideia da continuidade permanente dos direitos e deveres dinásticos na descendência dos reis. Ou seja, os descendentes dos nobres sempre carregam consigo, por direito hereditário, a honra de que foram investidos seus antepassados e o estado de nobres. Da mesma forma, os descendentes daqueles que não só foram nobres, mas que também reinaram, tem, em certo grau, a dignidade que essa posição conferiu àquele que portou a coroa.
Isso significa que a pretensão ao trono permanece, virtualmente, para sempre na família que uma vez o teve. Mesmo que se hajam passado séculos e um sem-número de gerações, o direito dinástico não se extinguiu.
Falamos no dito artigo anterior que sempre é possível que uma dinastia expulsa do poder venha a ser convidada a retornar a ele. Mas uma pergunta fica: No caso de uma restauração, quem teria o direito de assumir o trono? Ou seja, quem é o titular de uma coroa que atualmente não existe?
Um bom exemplo de como essa poderia ser uma questão problemática é o caso espanhol. Citamos antes o caso do retorno da monarquia espanhola com o fim do regime franquista. O então Chefe de Estado foi quem abriu as portas para a restauração monárquica. E, tomando esse papel para si, escolheu quem seria o próximo rei da Espanha.
Acontece, porém, que o escolhido para o trono veio a ser o príncipe D. Juan Carlos de Borbón, coroado rei D. Juan Carlos I. Para fazer essa escolha, porém, Francisco Franco passou por cima da ordem que a família Borbón e os monarquistas consideravam a natural. O pai de D. Juan Carlos, D. Juan de Borbón, era vivo quando o filho foi entronizado, e ele mesmo e muitos apoiadores da restauração acreditavam que ele, o filho primogênito do último rei, era quem deveria assumir o posto. Era meio como se o filho houvesse passado à frente do próprio pai para chegar ao poder, embora, de fato, fossem as circunstâncias políticas do momento que houvessem levado a isso.
Outro caso bem ilustrativo é o da dinastia brasileira, a qual também tem a questão da sucessão suscitada depois da deposição.
Quando D. Pedro II foi forçado a deixar o país e o cargo, era bem claro, pela Constituição imperial, que o teria sucedido no trono. Sua filha mais velha viva, a princesa D. Isabel, teria sido a imperatriz do Brasil. E a deposição e o exílio imposto à família não tinha o poder de arrancar dela esse direito ideal. D. Isabel era a pretendente ao trono, a titular da coroa brasileira, até a sua morte, e transmitiria essa pretensão aos seus descendentes. E tanto mais regular aconteceria essa transmissão da titularidade quanto mais recente era a deposição. Poucos anos ou poucas décadas após o fim da monarquia em nosso país, e o retorno ao regime parecia ainda mais plausível. E, aliás, é verdade que hoje os monarquistas continuam a considerar a hipótese da restauração como plausível. Ao mesmo tempo, porém, historicamente parece tanto mais distante que uma restauração como essa aconteça quanto mais tempo se tem passado desde a deposição.
Acontece, porém, que em 1908 o então herdeiro primogênito da princesa Isabel, o príncipe D. Pedro de Alcântara, assinou um documento de renúncia - ou seja, renunciava para si e para seus descendentes - a chefia dinástica da Casa Imperial do Brasil. Na ocasião, D. Pedro de Alcântara desejava casar-se com a condessa Elizabeth de Dobrzenicz, que pertencia à baixa nobreza, de ascensão recente. A própria princesa Isabel insistiu em que o filho renunciasse. Na época, era comum que os membros de casas reinantes se casassem apenas na alta nobreza ou com outras famílias reais e imperiais. Desse modo, a chefia da casa imperial passou ao irmão de D. Pedro, o príncipe D. Luís Maria, e deste aos seus descendentes. Hoje esse posto pertence a D. Bertrand de Orleans e Bragança, neto de D. Luís Maria.
Ocorre, porém, que desde os filhos de D. Pedro de Alcântara, a renúncia do príncipe vem sendo questionada por aquele ramo da família. Os seus descendentes, o chamado "ramo de Petrópolis" da família imperial, alegam ser os verdadeiros herdeiros da pretensão ao trono brasileiro. O príncipe D. Pedro Bourbon de Orleans e Bragança questiona a validade da renúncia de seu antepassado. Segundo ele afirma, a Constituição de 1824, que regia acima dos costumes questões referentes à vida pessoal dos monarcas, não vetava o casamento morganático aos príncipes, embora os vetasse às princesas. Sendo assim, a insistência da princesa Isabel em que o filho renunciasse sob esse pretexto não encontrava razões nas regras de sucessão. D. Pedro de Alcântara teria sido coagido a assinar uma renúncia inválida.
De modo que, comparando o caso espanhol com o brasileiro, poderíamos nos perguntar: Se ocorresse hoje a restauração da monarquia no Brasil, quem teria direito a ser o imperador: D. Bertrand ou D. Pedro?
A resposta simples parece ser: Nenhum dos dois. Ou, talvez, melhor seria dizer: Não podemos afirmar qual dos dois.
Da obra do jurista Mário de Méroe colhemos o seguinte princípio: Não existe direito adquirido ao trono. Isso significa que, mesmo numa dinastia de recente deposição, não existe garantia para nenhum de seus membros de poder voltar ao poder apenas pelo direito de nascimento.
E, de fato, se pensarmos bem, essa é apenas uma questão de lógica. Digamos que um determinado país passe por uma convulsão que exija o retorno a um regime monárquico. O anterior estado de coisas, se já houve uma monarquia ali, já não existe mais. Foi obliterado pela passagem do tempo. A instituição de uma nova monarquia é a formação de um Estado novo. É algo novo começando do zero. Nessas circunstâncias, quem empossar no trono?
É bem verdade que, pelo passado histórico, normalmente se optaria pelo retorno da mesma família à posição soberana. Não foi assim que aconteceu no caso espanhol? No entanto, embora o pai tivesse pretensões ao trono extinto e se julgasse o primeiro na linha de sucessão, foi preterido em favor do filho. Quem fez tal preterição? As circunstâncias políticas.
Nas sociedades modernas, o povo costuma ter a voz na política. Mas, mesmo num Estado que não fosse democrático, o que vem a acontecer de político depende de um sem-número de circunstâncias variáveis, que ditam o que está mais conforme ao espírito do tempo ou à vontade nacional. Naquela ocasião, do retorno dos Borbón na Espanha, pareceu politicamente mais apropriado que o filho precedesse ao pai - que o direito aparente fosse calcado pela conveniência. E assim se deu. E assim se fez o fato.
Suponhamos que houvesse um retorno da monarquia no Brasil. Quem teria direito ao trono imperial? Não é possível dizer com certeza. Será que o elementos políticos elegeriam a mesma família dos Orleans e Bragança, herdeiros aparentes de D. Pedro II? Será que optariam por escolher uma nova família reinante com base em argumentos diferentes? E, se os Bragança fossem eleitos, a vontade popular se inclinaria mais para o ramo de Petrópolis ou para o de Vassouras? Para D. Bertrand ou para D. Pedro, ou ainda para alguém das gerações mais jovens da família? Não sabemos. No momento, ela parece pouco inclinada a essa restauração. Mas quem pode dizer o que virá no futuro?
Mas, se não existe direito adquirido ao trono, que dizer daquelas dinastias que já se encontram há muito tempo, talvez séculos, afastadas, e que talvez nem tenham mais apenas a pretensão de reinar, mas apenas de conservar e honrar a memória de seus antepassados? Quem exerce a função de chefe dessas famílias? Quem tem direito a essa função e a ostentar os títulos hereditários? Sobre isso falaremos numa próxima postagem.
Referências
CASA IMPERIAL DO BRASIL. Parecer Jurídico Sobre a Questão Dinástica do Brasil. Disponível em: https://casaimperialbrasil.pt/parecer-juridico/ . Acesso em 16.01.2023
DIÁRIO IMPERIAL. A "Questão Dinástica" Brasileira. Disponível em: http://odiarioimperial.blogspot.com/2015/09/a-questao-dinastica-brasileira-parte-i.html?m=1 . Acesso em: 16.01.2023
MÉROE, Mário de. Tradições Nobiliárias Internacionais e Sua Integração ao Direito Civil Brasileiro. Centauro, 2005
SALVANDO O REI. Direção: Miguel Salvat, Hanka Kastelicová e Antonio Trashorras. Produção: Campanilla Films. Espanha: Max, 2022. Plataforma de streaming HBOMax
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