Origem dos Cavalcanti

(Armas antigas dos Cavalcanti. Fonte da imagem: ALBUQUERQUE et al., p. 10)

Como acontece com outras famílias medievais, a origem da família Cavalcanti se perde em lenda. No entanto, longe de tornar tal história desinteressante, acreditamos que esse fato engrandece o passado, dando à família um ar heroico, com o cheiro do mito e do fantástico. E tal relato se torna especialmente interessante quando pensamos na permanência dessa família até a atualidade, estendendo braços para o Novo Mundo.
No ano 774, Carlos Magno veio até a Península Itálica, a pedido do Papa Adriano I. A Igreja encontrava-se em dificuldades com Desidério, o rei dos lombardos, e pediu a intervenção do imperador. Como já referimos em artigos anteriores, a Itália medieval abrigava uma profusão de diferentes estados, e nem sempre havia consenso sobre quem era a autoridade a ser obedecida.
Carlos Magno foi vitorioso na campanha, e proclamou a si mesmo Rei dos Francos e dos Longobardos (ou seja, dos Lombardos). É nessa época, associado a um rei que também está na linha entre a lenda e a realidade, que os antigos cronistas localizaram a origem da família Cavalcanti.
A lenda diz que quatro barões irmãos, que eram homens de armas de Carlos Magno, vieram com ele para a Itália. Aí instalados, cada um foi o fundador de uma distinta família da época. Essas famílias seriam os Orlandi-Malevolti de Siena, os Monaldi de Orvieto, e os Calvi e os Cavalcanti de Florença. (UMBERTO CAVALCANTI, p. 7)
Além do claro aspecto de lenda desse relato, o registro mais antigo dele é do século XIV. (ALBUQUERQUE et al., p. 9) Ele parece ser fruto do esforço de historiadores medievais para dar uma alta e nobre origem às referidas famílias. No entanto, o fato de não haver registros do século VIII de uma família com o sobrenome Cavalcanti não é evidência de que tal parentela não existisse ainda. Geralmente, não havia sobrenomes na Alta Idade Média. Havia, quando muito, patronímicos, ou seja, um cognome com indicação de quem era o pai do portador. (COSTA, p. 37) Na verdade, muitos patronímicos , com o tempo, se tornaram nomes de família. E, assim como o sobrenome Guidi parecia indicar um antepassado chamado Guido, Cavalcanti parece indicar um antepassado de prenome Cavalcante, com e no final.
Ainda segundo a lenda, os quatro barões seriam originários da Alemanha, do castelo de San Giglio, na região de Colônia. (CAVALCANTE, p. 16) Embora seja uma origem mítica, não descartamos que haja algo de verdade na memória do passado tal como a família a preservou. Tanto é que o pesquisadores Marcelo Bezerra Cavalcanti e Rosa Sampaio Torres o localizaram. Na verdade, esse castelo não existe mais. Mas sua localização ficava onde hoje está a cidade alemã de Borheim. (TORRES) A origem mais distante dos Cavalcanti, portanto, seria germânica.
Sobre a origem do sobrenome da família em questão, a pesquisa de Rogério Cavalcante (p. 14) aponta que ele deriva do latim medieval caballicare, ou seja, cavalgar. Sendo assim, podemos concluir que Cavalcanti significaria algo como aquele que cavalga, que soaria mais ou menos como cavalgante. O pesquisador sugere que poderia indicar originalmente tanto alguém que monta a cavalo como um treinador de cavalos.
O registro mais antigo desse sobrenome é de aproximadamente o ano 1000 e cita o nome de Domenico Cavalcanti, um florentino, residindo em Florença. (UMBERTO CAVALCANTI, p. 7) A pesquisa de Rogério Cavalcante (p. 15) afirma que, embora a família possa ser contada desde Domenico, o sobrenome, de origem patronímica, se referia ao neto deste, Cavalcante dei Cavalcanti, e, portanto, só teria começado a ser utilizado a partir dos descendentes deste último.
A pesquisa de Albuquerque et al. (p. 9) diz que nesse princípio os Cavalcanti eram ricos devido ao comércio, principalmente de panos de lã. Moravam na área da Via di Calimala e da Via Porta Rossa, próximo do atual centro da cidade, na Piazza della Signoria.
Com essas informações, alguns talvez deduzam que fossem uma família burguesa, que, com o tempo, conseguiu ascender à nobreza, como posteriormente aconteceu com a famosa família Médici. Se fosse assim, a lenda dos barões de Carlos Magno seria realmente uma tentativa de dar um longo passado a quem era de distinção recente.
No entanto, deve-se observar que o conceito de nobreza na Itália medieval era, pelo visto, mais fluido do que estamos acostumados a pensar que fosse durante a Idade Média em geral. A própria ascenção posterior dos Médici é uma prova disso, embora tenha acontecido mais para o fim do Medievo e início da Modernidade. Não havia um Estado italiano unificado, e as elites locais podiam surgir organicamente, e quando possível mais ou menos baseadas numa hierarquia histórica. Outra demostração dessa fluidez é Bellincione Berti, de quem falamos no artigo anterior. Bellincione era burguês, e, ainda assim, um cavaleiro e homem ilustre da cidade - nobre o suficiente para casar a filha com o conde mais poderoso da Itália. Muito antes do resto da Europa, a Itália testemunhava o fortalecimento das cidades, e estruturas sociais clássicas como a aristocracia conviviam e se amalgamavam com a burguesia que aos poucos se estabelecia.
Outro indicador de que os Cavalcanti eram uma família nobre desde a sua origem é talvez o próprio significado do nome, como dito acima. Desde a Antiguidade, lidar com cavalos era uma atividade própria de guerreiros, dado o uso comum dos cavalos em batalhas nas civilizações clássicas. Na Idade Média, os cavalos continuaram associados a combates, e, portanto, à nobreza, já que aos homens da classe nobre cabia a atividade guerreira, com o desenvolvimento da instituição medieval da cavalaria. Se uma família conseguiu se estabelecer com esse nome e, como veremos, teve bastante status no início da História da cidade de Florença, é razoável crer que ela vinha da antiga nobreza. Numa sociedade de estamentos, a antiguidade da nobreza é um fator de status bastante valorizado.
Nesse passado rastreável, os Cavalcanti eram, de certo modo, como burgueses. Albuquerque et al. (p. 9) os chamam de "doublés de mercadores". Mesmo assim, já nesses época eles eram senhores de terras e castelos no campo, ou seja, no contado, e aparentados com a velha nobreza de passado mais documentado.
Sobre o conceito de contado, é interessante que se diga algo de sua origem. A palavra italiana contado é traduzida em português por campo, e se refere à área rural sob jurisdição de uma cidade. Fazendo uma comparação com o Brasil atual, seria como a zona rural pertencente a um determinado município. A palavra vem do latim comitatus, ou seja, condado, que designava originalmente a porção de terra controlada por um conde. (DIZIONARIO DI STORIA) Na Alta Idade Média antes do fortalecimento das cidades na Península Itálica, os condes formavam o topo da aristocracia, juntamente com os bispos, que costumavam ter tanto poder quanto eles. Com o aumento da organização e independência das cidades, paulatinamente estas foram absorvendo para colocar sob seu controle os territórios rurais antes comandados tradicionalmente por condes. Foi o que se deu, como mencionado no artigo anterior, no caso dos Guidi, que, aos poucos, perderam poder sobre seus próprios castelos, até perderem totalmente os territórios sobre os quais eram soberanos.
Isso mostra que, mesmo antes da completa formação da república de Florença, já os Cavalcanti eram senhores soberanos de seus domínios fora da cidade, que, como dito, incluíam terras e fortalezas. Eram senhores do contado, membros da velha aristocracia, já antes do enfraquecimento do poder desta. E, embora não tenhamos encontrado uma referência a eles como condes nesse período, nos parece claro que gozavam dessa distinção antes que os governos citadinos, e em especial a comuna de Florença, lhes viessem arrancar totalmente o antigo status.
Outra mostra de que os Cavalcanti tinham à época a distinção comital é, como dito acima, o seu parentesco com alguns antigos condes, de passado mais bem documentado. Desses parentescos, o que aqui nos chama a atenção é o que diz respeito aos Condes Guidi, de quem falamos nos artigos precedentes.
Gianozzo Cavalcanti, na quarta geração documentada da família, ou seja, bisneto de Domenico, era conhecido como Giannulieto, abreviação de Giovanni Leto. Leto significa feliz.
Gianozzo casou-se com uma das filhas do conde Guido Guerra III e da senhora Gualdrada, embora os documentos conhecidos não registrem com qual das filhas do casal aconteceu a união. Foi desse novo casamento que nasceu o filho de Gianozzo, Cavalcante dei Cavalcanti, (ALBUQUERQUE et al., pp. 10 e 11) e de quem se originou toda a descendência de quem pretendemos falar posteriormente.
Como mostrado nos dois artigos anteriores sobre a História dos Guidi, propriedades e a condição de conde era transmitida com normalidade a qualquer descendente, sem levar em consideração a varonia ou a primogenitura, princípios consagrados na lei sálica mas que não eram determinantes sob a lei ripuária.
Cavalcante dei Cavalcanti, filho de Gianozzo, foi cônsul da comuna de Florença em 1176 (ALBUQUERQUE et al., p. 11) Isso está de acordo com o que sabemos a respeito da composição das comunas italianas em seu princípio, a saber:
Em numerosos casos, a aristocracia consular era composta por famílias do contado, milites titulares de castelos ou de jurisdições senhoriais, famílias antigas enraizadas na cidade ou por profissionais da cultura escrita e da prática jurídica (notários, juízes), eles mesmos pertencentes a famílias aristocráticas (GILLI, p. 60).
Isso é mais uma demonstração do status de que os Cavalcanti usufruíam em Florença desde o início da História da família, justamente pelo fato de se terem originado na antiga nobreza. De modo que, ainda que haja uma aura de lenda no que se conta dessa origem, certamente ela estava baseada em elementos de veracidade.
O que estava em processo, no entanto, na Itália inteira durante o século XII - e, portanto, no período de vida de Cavalcante dei Cavalcanti - era, como dissemos, o fortalecimento das cidades. É isso o que se nota na seguinte observação de Gilli, p. 63:
Certamente, o contado e as regiões 'periurbanas' são, ainda no século XII, permeados de enclaves senhoriais e de castelos (em algumas cidades, esses enclaves perduram ao longo do século XIII), mas um movimento profundamente 'urbanocêntrico', que faz da cidade e das forças sociais que a dominam o coração pulsante da história italiana, está a caminho.
A Alta Idade Média chegava ao seu fim. Cada vez mais as cidades se tornavam o centro da vida política e social. Essas se iam organizando em torno das comunas, unidades administrativas semelhantes a prefeituras. E, como o exercício do poder real era disputado numa Itália não centralizada, as comunas começaram a exercê-lo com soberania. Nasciam pequenas repúblicas, verdadeiras cidades-Estado, que iam atraindo para si todas as potencialidades da região. E, por conta desse processo, foram surgindo conflitos entre o novo poder urbano e o modo independente como a velha aristocracia governava as suas terras. Aos poucos os condes, os senhores do contado, foram perdendo o controle de suas possessões para as comunas. Alguns, ao resistirem a esse processo, perderam totalmente seus castelos no campo, como aconteceu aos Guidi.
Cavalcante dei Cavalcanti, porém, era, a esta altura, senhor dos castelos de Lugo e de Ostinain em Val d’Arno, e delle Stinche, em Val di Greve. (ALBUQUERQUE et al., p. 11) A família não havia perdido ainda suas posses ancestrais no campo. Não se havia completado, no seu caso, o processo de perda do exercício real de soberania.
Tampouco a distinção de que gozavam os Cavalcanti foi apagada pelo fortalecimento da vida urbana. Ao longo da História subsequente, outros Cavalcanti ocuparam o posto de cônsul de Florença. Além disso, outros tiveram outras participações na vida pública daquela cidade e de outras da península - na política, na guerra ou na cultura. Eram uma família inteiramente integrada ao ambiente florentino. Estenderam ramos para outras regiões da península, e viriam a estender também para além, para o novo continente então ainda não imaginado. E nos próximos artigos mostraremos alguns desenvolvimentos dessa dinastia na Itália, até o ponto em que ela lançou as sementes que fixaram raízes no Nordeste do Brasil.


Referências bibliográficas

ALBUQUERQUE, Cassia; LIMA, Fabio Arruda de; BEZERRA CAVALCANTI, Marcelo; DORIA, Francisco Antonio. Os Cavalcantis: na Itália, no Brasil. Bingen: Jardim da Casa, 2011
CAVALCANTE, Rogério. Os Cavalcantes: um álbum de família. 3a. edição. Rio Branco: Edição do Autor, 2021
COSTA, Antonio Luiz M. C.. Títulos de Nobreza e Hierarquias. 1a. edição. São Paulo: Draco, 2016
DIZIONARIO DI STORIA. contado. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/contado_%28Dizionario-di-Storia%29/ . Acesso em 29.09.2023
GILLI, Patrick. Cidades e sociedades urbanas na Itália medieval: (séculos XII-XIV). Tradutores: Marcelo Cândido da Silva e Victor Sobreira. Campinas: Editora da Unicamp, 2011
TORRES, Rosa Sampaio. O Castelo de San Giglio. Disponível em: https://athena.pt/2020/11/05/o-castelo-de-san-giglio-a-quinze-milhas-de-colonia-por-rosa-sampaio-torres/ . Acesso em: 30.09.2023
UMBERTO CAVALCANTI, Silvio. Si Chiamavano Cavalcanti. Disponível em: https://xoomer.virgilio.it/cavalcanti/-SiChiamavanoCavalcanti.pdf . Acesso em: 27.09.2023

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