O conto de Júlio e Eleonora - 2

Um conto de amor, castelos e alegoria



Eleonora

Júlio entrou para o convento que havia no condado de Colanco. Era um austero lugar, com suas sólidas paredes de pedra fria, localizado bem na margem da floresta de Colanco, onde o acesso a lenha era fácil. Tinha aulas de latim, de teologia, de filosofia clássica, de filosofia natural, de história antiga – em sua maior parte com mestres frios e nada flexíveis, mas, meu Deus, que maravilha era aprender aquilo tudo. A experiência de camponês de Júlio era aproveitada em várias funções e tarefas. Cultivava na horta do convento, fazia corte da carne, caçava, extraía madeira da floresta, fabricava alguns instrumentos. A vida de um clérigo nascido no baixo estado não era tão diferente da vida de um camponês comum. Mas o acesso ao saber, para Júlio, era a diferença crucial e decisiva.
Passou-se tranquilamente o tempo do noviciado de Júlio. Sempre que havia oportunidade, visitava os pais. Oranius se certificara de conhecer o convento, travar relações com o abade, foi algumas vezes pessoalmente ao local, teceu elogios aos mestres. Via que o filho estava feliz, e se sentia por isso radiante, ainda que lhe doesse um pouco a falta do rapaz em casa. A mãe não chegara a ir ao convento. Ainda se ressentia  um pouco da abençoada prisão que separava seu filho do aconchego e conforto maternos que ela dava de graça.
E o tempo do noviciado se foi, e Júlio foi ordenado. Numa bela cerimônia, renunciou à vida secular, e prometeu dedicar-se permanentemente à vida monástica, ser dali em diante instrumento da graça divina, a prestar serviço sagrado para o bem de outros. Para ele, era maravilhoso, uma vez que seria para sempre um homem de conhecimentos divinos e humanos, celestes e terrenos. Habitaria entre a forma mais física da vida terrestre, e a vida elevada e sobre-humana das palavras.
Depois da ordenação de Júlio, tudo corria em paz e tranquilamente. Oranius mantinha a proximidade com o filho. A mãe chorou ainda por bom tempo a ausência do filho, agora sacramentada segundo os mandamentos da Igreja.
O tempo passava, e certo dia o monastério aguardava a visita do conde, senhor daquelas terras. Vinha saber a quantas andava o mosteiro, e se havia necessidade de alguma ajuda, alguma doação, alguma caridade especial que ele pudesse prestar.
Esse conde era um homem severo, embora não fosse exatamente mau. Não, de fato não era mau. Mas não era inteiramente alguém bondoso e simpático. Ninguém é totalmente bom ou totalmente mau. Ele era um senhor rígido, até certo ponto temido pelos camponeses que lhe serviam, mas não temido demais. E como parte de seu dever moral de caridade, se responsabilizava pelo bom funcionamento daquele mosteiro localizado em suas terras, construído em terreno doado por ele e com boa parte de recursos dele.
Esse conde tinha uma filha lindíssima. Muitos que a viam concordavam de imediato que fosse talvez a moça mais linda do mundo. Essa filha também tinha um interesse especial pelo convento do condado: era o único lugar em toda a região onde havia livros.
Naquela ocasião de visita ao monastério, o conde levou a filha. O abade os recebeu. O conde beijou a mão do religioso para receber a bênção.
– Meu caro frei, quero ver tudo. Mostre-me tudo em que se precisa da ajuda que eu possa dar.
– Sua generosidade com certeza será recompensada do alto, senhor. Somos muito gratos. Venha, falaremos sobre tudo.
– Senhor frei, minha filha Eleonora me acompanha desta vez. Ela pretende ver a biblioteca.
– Ah, sim, senhor. Isso será feito. – E olhou em volta procurando um frade. Chamou o primeiro que passou. – Irmão, venha cá. Leve a filha de sua excelência à biblioteca. Acompanhe-a durante todo o tempo, providencie o que ela procura. Seja o guia dela por hoje.
O frade veio. Era Júlio. Ficou meio atrapalhado; era difícil não ficar atrapalhado na frente de uma mulher jovem tão bonita. Calculou mentalmente que tinham, ela e ele, mais ou menos a mesma idade. Ela sorriu para ele, e o sorriso dela parecia que iluminava o mundo. Ele ficou meio sem saber o que responder.
– Se eu não for atrapalhar as tarefas do irmão, senhor abade – disse a moça.
– Não, não atrapalhará – respondeu o abade. – Ele fica isento dos outros trabalhos enquanto acompanhar vossa excelência.
– Fico muito grata, senhor – e sorriu com mais um toque ainda de doçura.
Por um instante, Júlio tivera medo de não ser necessário àquela distinta senhora.
Na biblioteca, Júlio mostrava tudo que Eleonora pedia. Aquilo era extremamente incomum, aquele interesse em literatura, em história. Nos livros científicos ou outros cheios de certos detalhes entediantes não pegava. Algumas partes da História antiga lhe chamavam atenção, como os relatos sobre Cleópatra, as disputas de poder entre os cônsules de Roma, a condenação injusta de Sócrates e coisas assim. A poesia também lhe prendia os pensamentos. Era uma moça de agradável sensibilidade.
– Acredita que Cleópatra realmente amava César, frei? – perguntou a moça.
Júlio, a quem tal assunto nunca tinha ocorrido, não sabia que resposta dar.
– Creio que sim, excelência. Sim, sim. – respondeu meio sem certeza.
– Então por que foi amante de Marco Antônio logo depois que César morreu? Por que ela se matou junto com ele? Por que não se matou junto com César? – ela devolveu, com os olhos fremindo de impaciência, uma impaciência doce. – Será que foi tudo pelo poder? Ela não teria tentado seduzir Otávio também, depois da derrota de Marco?
– Sim, sim, excelência... Eu não sei... Realmente não sei...
E logo ela inseria outro assunto. Sua mente, tão sedenta de entender a personalidade e o nível de envolvimento emocional da antiga rainha do Egito, passava muito rapidamente a outro tema com igual sede. Queria que seu entendimento pudesse abarcar o mundo.
Foi uma manhã muito aprazível. Terminado o acerto dos tratos entre o conde e o abade, o nobre e a filha foram embora. Júlio havia ficado bastante impressionado.
Dias depois, enquanto fazia um maravilhoso sol de primavera, alguém inesperado veio ter ao convento. Montada a cavalo e sozinha, vinha Eleonora, tão linda como uma fada, só que em trajes de montaria. Bateu à porta. Foi recebida com espanto pelos monges todos. A excessiva beleza daquela mulher jovem só podia inquietar, pelo menos um pouco, a tranquila austeridade daqueles homens religiosos que haviam escolhido e jurado ficar para sempre solteiros.
– Vim para usar a biblioteca – explicou ela aos monges que a receberam.
– Certamente, excelência – respondeu um deles. – Informaremos aos senhor abade para que designe alguém que a auxilie.
– Não, meu caro frei – atalhou a moça, com um sorriso que tinha o mesmo tom do sol lá fora. – Eu quero que seja o irmão Júlio. Se não for atrapalhar as atividades dele.
Os irmãos todos prestaram atenção naquilo. Por que Júlio é quem tinha direito a usufruir o imenso deslumbre que era a companhia e as atenções daquela mulher? Por que Júlio? Por que não eu? Era o que cada um se perguntava em algum lugar recôndito de seu cérebro, lá onde os pensamentos que não se deve ter ficam escondidos.
– Tenho certeza de que o abade concordará, senhora – respondeu respeitosamente o frade. Fez uma reverência e se retirou à procura do superior.
Daí a pouco, Júlio veio encontrar-se com Eleonora no frio corredor de paredes de pedra.
– Estou de volta, frei. O espaço dentro deste convento é maior do que o condado inteiro.
E aquecendo com sua presença aquele ambiente física e humanamente frio, Eleonora atirou-se aos livros e a todas as emoções e sensações que lhe podiam proporcionar. Lia para Júlio, pedia seus comentários, fazia comentários melhores. Quando pedia que ele lesse, sempre fazia observações, corrigindo os defeitos nas expressões frias daquele homem. Júlio passara apenas por emoções comuns na sua infância e no começo da sua juventude, a vida decorrera sem grandes abalos e também sem grandes arroubos. O convento era ainda mais sóbrio e quieto, era a própria forma completa da quietude. Tudo isso tinha feito do rapaz um homem por fora frio. Por dentro, tinha um coração imensamente tendente a ser afetuoso, e esse afeto tinha se restringido até então à ordem natural das coisas: amava os pais, amava a vida que levava atualmente entre o mundo da matéria e o limiar da presença divina. Mas por dentro havia uma fagulha de calor, esperando só o combustível para virar vulcão.
Aquela moça, porém,  era diferente de tudo que ele conhecera até então. O sorriso dela era como um convite a algo puro mas cálido. Júlio se esforçava para não ficar ruborizado perto dela, quando ela olhava para ele luzindo como um dia de primavera.
Dias depois, aconteceu de Eleonora vir ao convento novamente. E de novo. E de novo. Sempre requeria a companhia de frei Júlio, achava mesmo que não podia ter melhor. Ele era sensível como ela, do tipo certo de sensibilidade. O tipo certo de sensibilidade é aquele que possuem as pessoas capazes de entender poesia, esteja ela em palavras ou não. Os olhos daquele rapaz brilhavam com o que era belo; ele estava repleto de vida e ardor, ainda que escondidos atrás do hábito monástico. Ela via que a vida de monge não era para ele. Ele nascera talvez para um sacerdócio mais alto que aquele, para uma forma mais divina de viver o amor.
Mas não pense que nesse primeiro momento da proximidade entre os dois alguém estivesse consciente de qualquer coisa como essas.

(Continua)

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