Os Condes Cavalcanti: Sangue lombardo no Nordeste

 No capítulo inicial de O Guia do Mochileiro das Galáxias, vemos um pacífico cidadão comum, Arthur Dent, embora sem perder a compostura visível, sentir rugir dentro de si a fúria ancestral de seu antepassado Gêngis Khan. Embora no romance Arthur não soubesse do fato de que descendia do célebre e temido líder mongol, ainda assim tinha bem lá dentro, escondida sob a capa de sucessivas gerações supostamente mais civilizadas, uma centelha de ação e coragem que se mantinha viva atravessando séculos.

Será provável que traços de personalidade consigam sobreviver por tanto tempo diluídos assim em um mar de outras cargas genéticas? Mesmo, entretanto, que tal persistência não fosse possível apenas para as tendências inatas, ainda assim não se pode negar que a informação cultural e as estruturas históricas atravessam gerações. A pacata e impassível rainha Elizabeth II pode remontar sua genealogia até Guilherme, o Conquistador, e daí aos ferozes vikings daneses. Pulsa no peito dela o fervor de tais piratas e do invasor normando? De todo modo, ela carrega uma honra hereditária que deve a eles, e é levada, por tal herança, a se portar como se porta e a carregar o fardo da posição e do reinado com toda a dignidade que lhe foi ensinada. 

Demonstramos no post anterior as relações entre os Cavalcanti e uma das poderosas famílias medievais da Toscana. Apresentamos a evidência de como os Cavalcanti, mesmo no início de sua história, haviam se tornado importantes o suficiente para granjearem um casamento entre a alta nobreza lombarda. De modo que agora mostraremos como esse sobrenome tão caracteristicamente brasileiro – e mais ainda nordestino – faz de seus portadores por si só nobres titulados.

Segundo afirmamos no post anterior, um afortunado Cavalcanti no século XI, Giannulieto, ou Iannis Leti (Iannis Feliz), casou-se e teve filhos com uma distinta senhora, filha do conde Guido Guerra III. Mas quem era o conde Guido Guerra e quem eram seus parentes?

Alta figura no cenário político da Toscana, Guido era um nobre lombardo do Império Romano-Germânico. Esteve presente em importantes lutas e cercos de sua época, embora ele mesmo pareça não ser um dos mais famosos dentre os membros de sua dinastia. Não cheguei até agora a um volume muito grande de informação sobre a vida desse personagem específico.

Por outro lado, se Guido III não é o mais afamado dentre a família Guidi, nem por isso a casa Guidi não foi, em seu tempo, preclara e distinta. Na verdade, Guido era um elo de uma dinastia que manteve seu poder sobre a Toscana por um tempo considerável.

Os Guidi eram condes. Numa publicação futura entraremos em consideração sobre o significado de tal título na Idade Média. Por hora basta-nos essa afirmação. Eram senhores de terras e castelos no norte da Itália. O Castello dei Conti Guidi di Poppi é um ponto de visitação turística até hoje, em testemunho da relevância que essa família tinha para a região.

Vista aérea do Castello dei Conti Guidi di Poppi
Vista aérea do Castello dei Conti Guidi di Poppi. Fonte: TripAdvisor

O poder dos Guidi era assegurado por suas relações duradouras com o centro de poder do Sacro Império, que dominava a região na época. Mantinham relações com a coroa do Império desde o século X, quando a família teve início. E, pelo visto, era por essa vassalagem ao imperador que gozavam do status de condes palatinos. Em uma postagem futura queremos tratar também do sentido mais pleno desse título.

Mas por que dizemos que os Cavalcanti, descendentes dos Guidi, tem também o direito ao título de condes? Afinal, embora os filhos de um nobre sejam todos nobres também, não é apenas o mais velho que herda o título senhorial?

Sim e não. De fato, durante toda a Idade Média o procedimento mais comum em se tratando de herança entre senhores feudais foi a preservação da terra como unidade. Afinal, dividir a terra seria fracionar o poder da família até ele se esfacelar e desaparecer depois de muitas gerações. Por isso a forma mais aceita de herança foi quase sempre aquela em que o primogênito varão ficava com tudo, e com o título.

No entanto, não era assim no caso dos Guidi. Contrariando a regra, os Guidi eram uma família lombarda que praticava a herança fracionada. De modo que basta dar uma olhada em sua genealogia básica para perceber que, ao passo que a família se dividiu em vários ramos, todos eles continuaram a ostentar o honroso título de conde, evidência de seu passado sempre forte. Na verdade, coerente com esse fato, ainda há na Itália membros da família Guidi, que carregam ainda tal sobrenome, e até que usam – não sem razão – o título de condes. Não é, de fato, um título restrito a uma única pessoa na família.

Sendo, portanto, os Cavalcanti descendentes dos Guidi, ou até mesmo um ramo deles, não há motivo para que não tenham também o direito ao título de condes. É verdade que isso estende o título nobiliárquico a uma boa multidão de gente. Mas é assim em genealogia. Quando paramos para ver, todos nós descendemos de príncipes.

E quanto a sermos príncipes, numa próxima publicação pretendemos dizer, como mencionado, o porquê de os condes Guidi de ontem e de hoje serem também portadores naturais dessa honra.

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Atenciosamente,

Filipe Cavalcante

Referências que consultei:

FALCE, A. Guidi. Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/guidi_(Enciclopedia-Italiana)/ (Acesso em 09.05.2022)

KLEINHENZ, C. Medieval Italy - An Encyclopedia. Parcialmente disponível em: https://books.google.com.br/books?id=TNs3BQAAQBAJ&printsec=frontcover&hl=pt-BR#v=onepage&q&f=false (Acesso em 09.05.2022)


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