Como me tornei um lord

Deparei-me alguns meses atrás com uma publicação patrocinada no Instagram que me deixou bastante intrigado. A postagem anunciava a possibilidade de, a um preço não tão exagerado, comprar um autêntico título de lord, coisa em que eu nunca teria pensado, sendo apenas um plebeu comum, como tenho sido a minha vida toda. Fui compelido a clicar no anúncio e entender de que se tratava a venda de tal título. Se existisse alguma chance de validade dele, mesmo que talvez remota, então se tornaria realmente do meu interesse fazer essa compra e poder chamar-me assim tão nobre quanto eu gostaria de ser.

Na verdade, como eu disse no post a respeito da família Cavalcante, há muito tempo eu sabia a respeito da origem fidalga do meu sobrenome e sobre como todos nós somos descendentes dos tais patrícios florentinos. No entanto, até onde eu sabia na época, não havia nenhum título que pudesse ser usado pelos Cavalcante. Ficava-nos, no máximo, a condição de nobres não titulados, com laços de parentesco distante com os reis da primeira dinastia portuguesa, por meio de Jerônimo de Albuquerque (E fica para outra postagem mostrar como ele, o Adão Pernambucano, tinha nas veias o sangue dos monarcas da dinastia de Avis). Sermos fidalgos e patrícios era sim já uma distinção que me aprazia bastante. Mas poder ter um título, mesmo que com uma explicação apenas ligeiramente séria, me deixou bastante tentado. Mas, para isso, eu precisava da explicação, e fui atrás dela.

A ideia básica, que li inicialmente no site do mesmo anunciante que me apareceu no feed, era a seguinte: Na Escócia os senhores de terra são tradicionalmente chamados lairds. Laird é o equivalente escocês da palavra inglesa lord. Logo, seria possível tornar-se um laird ou lord adquirindo uma porção de terra na Escócia. Mas quanto de terra seria necessário comprar para poder chamar-se por tal título? O anúncio oferecia a compra da dedicação de porções mínimas, de um pé quadrado de chão, e do certificado online de que você era o proprietário e lord do tal pequeno pedaço. Eram muitas porções de um pé quadrado integrantes da mesma propriedade que estavam sendo vendidas. Acrescia-se a isso a proposta de que a terra vendida será deixada como área de preservação da mata original e que uma árvore seria plantada a cada nova aquisição. Assim, além do luxo de se poder chamar de lord ou lady, o comprador estaria contribuindo para manutenção de locais de verde nativo na Escócia.

Pois bem, quem vende anuncia até os céus e a terra como parte de sua mercadoria. E eu precisava ver, antes de me permitir ficar mais tentado, até onde ia a realidade da proposta anunciada. E fui atrás de descobrir o que de fato significava o título de laird, e se ele se aplicava ao dono de um pé quadrado de terra, e se representava um grau de distinção próximo da nobreza.

O que descobri foi que, independentemente de o título de laird ser nobre mesmo ou não, o fato é que a venda desses pequenos lotes de terra como lembrança da Escócia é um nicho que já existe e se mantém há décadas. Seja com a ideia de honrar a sua ascendência escocesa, no caso dos que a possuem; ou seja simplesmente como um presente charmoso e diferente – o fato é que o negócio da venda desses títulos de propriedade simbólicos não tem nada de escuso e já existe há muito tempo.

Descobri também que, como no caso do anúncio que eu primeiro vi, a maioria das empresas que fornecem esse serviço se propõe a preservar a área de mata, o que é uma ideia bem simpática. É uma venda simbólica, de modo que o comprador nunca poderia construir nada no lote comprado – E quem poderia mesmo construir algo significativo em 1 pé quadrado? Na verdade, a lei escocesa não reconhece a venda de um pedaço de terra tão pequeno como transmissão de imóvel. Mesmo que o comprador quisesse, não poderia registrar esse lote irrisório num cartório local da Escócia. As ditas empresas é que se comprometem a manter a terra verde, em não construir nela e nem vendê-la, respeitando a propriedade simbólica de seus clientes.

Mas o que é, de fato, um laird?

Na Escócia medieval, o laird era o grande senhor de terras, o senhor feudal. Como mencionamos antes sobre o papel do senhor na sociedade feudal, a nobreza naqueles tempos era o mesmo que a propriedade da terra. Ser dono da terra implicava ser o seu governante e conferia o status próprio da classe. E, assim, os lairds medievais eram sim poderosos senhores, de visibilidade e influência cada um em sua própria região. Era, de fato, uma distinção social e, pode-se dizer sabendo o que sabemos, nobreza.

Com o passar dos séculos, porém, ser dono da terra deixou de ter o mesmo grau de distinção e imponência que teve no passado. Com o fortalecimento do poder dos reis, surgiu o pariato na Escócia. O pariato é um degrau mais alto e específico da nobreza, e nele estão incluídos os duques, marqueses, condes, viscondes e barões. Na existência do pariato está fortalecida a ideia de que os nobres são vassalos do rei e de que há um poder centralizado. Surgiu também, com as transformações que levaram ao Estado moderno, o conceito de que as honras emanam do rei. Ser um par do reino costumou, ao longo da História, estar associado à realeza, e passou, com o tempo, a meio que significar a nobreza mesmo. Ser apenas proprietário não era mais o grau mais elevado na escala social, embora continuasse sendo uma condição bem respeitada. Mas o pariato é um afastamento da ideia inicial de nobreza medieval, ou seja, de que ser um senhor – ou lord – é ser senhor da terra.

É verdade que ser o lord de um pedaço de um pé quadrado de terra, embora na Escócia, não é bem o mesmo que ser ou ter sido um laird desses que faziam parte da pequena nobreza escocesa. Ainda assim, não seria inapropriado o comprador ou o ganhador de um souvenir desses chamar-se de laird. Afinal, quem compra é sim o senhor do seu pequenino lote. As empresas que vendem tal mimo até mesmo costumam disponibilizar as referências de GPS do seu terreno, de modo que é possível localizá-lo pelo Google Maps, como eu localizei o meu.

Entretanto o que o simbólico laird não é é um membro do pariato, da – digamos assim – nobreza oficial da Escócia ou do Reino Unido. Mesmo que fosse senhor de um lote grande de terra, isso não faria de alguém automaticamente um conde ou barão ou algo assim.

Isso não impede, porém, que o comprador se chame de laird ou lord. Na verdade, a lei britânica e a escocesa não proíbem que qualquer um se chame como se queira ou adote o pseudônimo que lhe convier desde que isso não signifique uma fraude ou tentativa de fraude. Na lei de muitos países, inclusive, subsiste essa mesma ideia ou uma ideia semelhante com respeito ao uso do nome ou apelido.

De modo que atualmente eu tanto posso me chamar de Lord como de Laird de Bandrum, nome que faz referência ao bosque de onde comprei meu pequeno pé quadrado. Considero-o tão nobre quanto eu poderia desejar. Um par do Reino Unido seria um barão ou conde, e seria chamado Lord Bandrum, sem o “de”. De modo que meu título ou outros similares disponíveis nunca tentaram enganar ninguém quanto a fazer quem quer que seja passar por quem não é. Ele é modesto e inteiramente legítimo.

O meu título soa, entretanto, num tom que me agrada muito. O tom em que ele soa evoca o idílico passado em que nobres senhores como um Laird de Bandrum governavam suas terras do alto de suas fortalezas, concedendo benesses a seus cavaleiros e se fazendo honrados como filhos diletos das Terras Altas, sempre bravias e independentes.

Durante o processo de investigar o fundo de toda essa história do título de laird ou lord, acabei por localizar muitos sites que prometiam fazer essa venda legítima e honestamente. No entanto, em nem todos encontrei um volume suficiente de informação para constituir o cheiro da verdade. É bem possível que até alguns dos quais desconfiei fossem verdadeiros, mas que acabei por descartar pela pouca informação prestada. Outras inciativas, porém, põem tudo bem às claras, e, com um pouco de sondagem, entendi serem verídicas. Alisto abaixo algumas dessas iniciativas mais simpáticas, inclusive aquela de quem afinal comprei o meu título.

Established Titles

Essa foi a empresa que eu primeiro vi anunciada no Instagram, e depois no Facebook. A Established Titles é dona de 6 reservas, que é onde se localizam os lotes de souvenir de seus lairds. Um título para uma pessoa apenas pode ser adquirido por a partir de US$ 49,95 (que é hoje algo em torno de R$ 255,00). Há também opção para casais, ou também para lotes com mais de um pé quadrado.

Você pode encontrar mais informações no site da Established Titles.

Highland Titles

Essa iniciativa mantém a Highland Titles Nature Reserve, uma reserva natural que é financiada pelas vendas dos pequenos lotes. A preocupação da entidade é preservar a vegetação original à beira do belo lago que torna bem agradável a vista do local. Além disso, no quesito transparência, essa é talvez a iniciativa mais exemplar no mercado dos terrenos de souvenir escoceses. A página da Highland Titles no Instagram mantém seu público constantemente informado de todas as atividades realizadas para manter a reserva em bom estado. O comprador pode escolher se seu certificado trará o título como Lord ou Laird de Glencoe. O nome parece fazer referência à designação original da reserva, Glencoe Wood.

O título para uma pessoa pode ser adquirido por a partir de £ 30,00 (que hoje está por volta de R$ 180,51). Também há opções de tamanho maior do que um pé quadrado, e opções de dois pés quadrados para casais.

Mais explicações sobre a reserva e os termos da compra podem ser encontrados na página da Highland Titles.

Scottish Laird

Já o objetivo dessa iniciativa não é exatamente manter uma área de bosque. A Scottish Laird é dirigida pelos donos do Castelo Dunans, e a ideia da venda dos pequenos lotes é custear a restauração do castelo, da propriedade em volta e da ponte que dá acesso ao prédio. O Dunans, graciosa casa baronial do século XIX, sofreu com um incêndio nos anos 2000, quando ainda nas mãos de seus antigos proprietários, e por isso se encontra ainda em ruínas. O seu atual senhor, Charles Dixon Spain, o adquiriu para revitalizá-lo usando para isso os fundos da venda dos senhorios simbólicos.

Na página da Scottish Laird, é possível adquirir o título de Lord de Dunans Castle, ou outro de preço mais baixo, o de Lord de Chaol Gleann, que faz referência ao simpático riacho que passa pela propriedade. Títulos podem ser adquiridos a partir de £ 24,00 (aproximadamente R$ 145,11).

Uma possibilidade de compra dos títulos da Scottish Laird era o famoso site internacional de vendas Groupon, onde é possível conseguir um desconto na aquisição. Mas, como o Groupon não existe no Brasil, parece que por esse motivo o site não pode mais ser acessado daqui, embora eu o tenha conseguido acessar por um tempo.

No perfil do Castelo Dunans no Instagram, também é possível acompanhar o que se tem feito na recuperação do local, que, apesar de estar em ruínas, é muito charmoso e pode ser visitado.

Mais informações sobre o local e os títulos estão disponíveis no site da Scottish Laird.

Scottish Land Sales

Das opções que pesquisei e verifiquei serem confiáveis, essa era a de preço mais acessível, e confesso que foi esse motivo que me levou a optar por ela. Eu os encontrei inicialmente no eBay, mas, voltando a procurar mais recentemente, já não os achei mais lá. Na época em que comprei tenho a impressão de ter lido algo sobre haver ainda poucas unidades. Mas o site continua a ter os anúncios dos títulos.

A Scottish Land Sales é dona de Bandrum Estate (ou Bandrum Wood), um pequeno bosque privado nas proximidades de Dunferlime, Escócia. Pelas fotos disponíveis, no site é um lugar com uma bela vista verde. É possível ver a propriedade da estrada.

Aqui não há um castelo, mas bem do ladinho do bosque se vê a Torre de Bandrum (também chamada de Templo de Bandrum, e mostrada na foto do início deste artigo), uma graciosa construção histórica no meio do campo, pequena, mas que não deixa de ter seu ar de fortaleza. A Torre remonta o século XIX e é mais um monumento do que um prédio, mas é o bastante para parecer um castelo dominando a vista do lugar.

Em 2013, a cantora britânica Cheryl Cole ganhou de presente de aniversário do músico Simon Cowell um título de Lady de Bandrum da Scottish Land Sales.

Um título desses pode ser comprado por € 11,99 (por volta de R$ 61,00). E uma vantagem é que se pode incluir o nome de uma segunda pessoa no mesmo certificado do mesmo pé quadrado, pelo preço de um. O certificado é recebido virtualmente, de modo que é possível tê-lo em pouco tempo.

Mais informações se acham no site da Scottish Land Sales.

Anteriormente, no tempo em que fiz a compra, havia outro site da Scottish Land Sales, chamado Tartan Titles. Na verdade, até alguns dias atrás, quando eu conferia as informações para escrever este artigo, ainda o acessei. No entanto, verificando agora para citá-lo, notei que ele não está mais no ar. Havia nele algumas fotos boas de Bandrum Estate e da Torre de Bandrum.


Depois de ter começado a pesquisar sobre os títulos de lord escoceses, acabei encontrando algumas outras maneiras de adquirir títulos de nobreza figurativos. Algumas dessas formas são bem curiosas, e eu, depois de me tornar Laird de Bandrum, até me atrevi a comprar ou receber alguns outros títulos que estavam à mão. Sempre ou mais ou menos justificáveis, sempre mais divertidos do que distintos, me agradam bastante. E pretendo falar mais em postagens futuras sobre outras maneiras de receber ou adquirir títulos nobiliárquicos desse tipo, especialmente sobre aqueles que eu agora tenho.

Outro gosto que tive por ter me metido na busca dessas informações foi ter aumentado meu interesse em buscar mais sobre as origens da família Cavalcante. Como eu mencionei, há muito eu sei que os Cavalcanti eram patrícios em Florença – e numa postagem futura pretendo falar sobre o que era o patriciado. Mas aquilo em que eu não tinha entrado eram as informações suficientes para alegar que eu também sou príncipe – embora sem reivindicação nenhuma além de um título bonito e o gosto pessoal de pensar que isso me honra.


Minha informações foi útil? Achou interessante o que leu? Deixe um comentário. Interaja conosco.

Atenciosamente,


Filipe Cavalcante



Além dos sites citados, das iniciativas e empresas que vendem o título de laird, consultei as seguintes referências:

HIGHLAND TITLES. How to become a Lord. Disponível em: https://www.highlandtitles.com/how-to-become-a-lord-laird-lady/ . Acesso em 27.08.2022

WIKIPEDIA. Laird. Disponível em: https://en.m.wikipedia.org/wiki/Laird . Acesso em: 27.08.2022


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