Um caso de herança feminina na nobreza medieval

Casamento em gravura medieval. Fonte da imagem: TCD.
Casamentos eram uma forma de ascenção social na Idade Média também para homens

Em um post anterior deste mesmo blog, fizemos a afirmação de que os membros da família Cavalcante/ Cavalcanti, como eu mesmo, tem o direito dado pela História medieval de chamar-se de condes. Afirmamos lá nessa postagem que as pessoas deste sobrenome são descendentes do faustoso casamento entre um certo Iannis Leti, uma das pessoas mais antigas a usar esse sobrenome, e uma senhora da nobreza lombarda, de uma família há muito estabelecida e poderosa na Toscana.
No entanto, pode ter ficado uma dúvida no leitor quanto a essa audaciosa afirmação. Afinal, quem conhece um pouco da História dos título nobiliárquicos está familiarizado com a transmissão desses títulos por via masculina, ou seja, patrilinear. É assim que tradicionalmente as aristocracias tem transmitido títulos, ou seja, do pai para os filhos varões. E, como estamos acostumados a ver, do pai para o filho primogênito apenas - em geral, preferencialmente o primogênito varão.
Como afirmamos lá na nossa outra postagem, a senhora lombarda da Toscana de quem vieram a descender os Cavalcanti era filha de um poderoso dinasta local. Os registros do passado a que hoje se pode ter acesso infelizmente não guardaram o nome dela. O fato que se pode saber, porém, é que a dita mulher tinha por pai o então famoso conde Guido Guerra III, cabeça em seu tempo da família comital Guidi.
Vimos também naquela postagem que a família Guidi, diferente do que costumava ser o normal na época, praticava a herança fracionada. Isso significa que os nobres dela dividiam os bens do falecido entre os herdeiros. Significa também que títulos honrosos, como o de conde, não eram transmitidos apenas ao filhos primogênito.
Os documentos dos séculos XI e XII de que hoje se serve a genealogia para traçar o perfil, os feitos e a posteridade dessas personalidades do passado de fato guardaram com bastante exatidão a transmissão do título de conde pelas vias masculinas dos descendentes de Guido Guerra. Realmente, a informação que se encontra com muita facilidade ao pesquisar-se a árvore genealógica posterior de Guido III é sobre como seus bens e sua dignidade foram transmitidas ao seus filhos homens. E quanto a essa transmissão masculina de posses e grandeza, o resgistro é bem claro.
Guido Guerra III faleceu deixando 5 filhos homens, e 4 mulheres. Quando morreu, deixou seu senhorio principal, o condado de Modigliana, para seu filho Ruggiero. Este Ruggiero, no entanto, veio a falecer sem filhos. Sendo assim, os seus irmãos acordaram dividir a herança do pai Guido entre os irmãos restantes.
Quando o registro diz que as posses de Guido foram divididas entre seus filhos - procedimento, inclusive, que não era o habitual entre as famílias nobres medievais - normalmente se entende que essa divisão se deu entre os filhos homens. Mas teria mesmo a divisão dos bens de Guido excluído suas filhas mulheres? E quanto à honra comital, era ela também exclusiva dos homens da família? Responder a essa pergunta importa aqui para os nossos curiosos interesses, porque, para que eu possa me proclamar conde e príncipe, devo provar que o título de condes também era herdado por mulheres e por meio de mulheres na família Guidi. Só assim ele poderia ter sido herdado pelos Cavalcanti, e, desse modo, chegar a mim.
Ao passo que os varões da prole sobrevivente de Guido Guerra deram origem a outros ramos da família, que destino tiveram as suas irmãs?
Bem, a literatura da época, e a atual que a replica, nem sempre mencionam todas as filhas de Guido. É bem conhecido do registro o destino de uma delas, a condessa Gualdrada Guidi, xará da mãe. Pois bem, essa condessa Gualdrada casou-se com outro nobre, Alberto V Alberti, conde de Mangona. Seria Gualdrada chamada de condessa por direito próprio ou por ser esposa do conde Alberto? O fato é que o casal teve dois filhos, um conde de Mangona - e, portanto, sucessor do pai - e um conde de Cerbaia. Transmitir o título para todos os filhos começara então a ser um costume espalhado para aqueles ligados à família Guidi.
Outra evidência de que, embora talvez não sempre a posse da terra, mas o status principesco era transmitido a mulheres e por mulheres na família Guidi é a própria origem da dinastia.
O primeiro conde Guidi, Tegrimo I, ou Teudegrimo, chegou ao posto nobiliárquico de conde em algo por volta do ano 925. É provável que ele já pertencesse a uma família destacada da nobreza local, embora muito pouco se saiba sobre seus antecedentes. Nem há documentos anteriores a essa data que o mencionem como conde. De onde então lhe veio esse título distintivo?
A lenda que depois veio a circular sobre esse fato dizia que Tegrimo era um cavaleiro chegado à Itália com o imperador Otão I do Sacro Império, e que teria sido nomeado conde pelo mesmo imperador, com a autoridade advinda do título. No entanto, uma comparação correta das datas mostra que essa hipótese seria impossível. Tegrimo já vivia na Itália e tinha filhos em 924, quando Otão chegou à Itália apenas em 951. Ou seja, em resumo, Tegrimo claramente já vivia na Itália e provavelmente já era casado bem antes de o imperador germânico vir à Toscana. E, de fato, já era conhecido como conde. De modo que não foi por esse meio que ele veio a conseguir o alto título.
Parece certo afirmar, já que tudo leva a crer assim, que Tegrimo tenha se tornado conde não por concessão imperial e nem por herança própria. Foi o casamento que o elevou a essa posição. Afinal, como mencionamos, ele não pertencia a uma nobreza de um patamar assim tão elevado, já que praticamente desconhecida.
Quem era a esposa de Tegrimo Guidi? A informação que temos é que ela era uma senhora chamada Engelrada ou Ingelrada. A moça era filha de um certo Martino, duque de Ravenna. Este sogro sim era, pelo que se depreende do título, um senhor de alto posto. Os duques medievais eram praticamente reis, faltando-lhes pouco para essa distinção. Como dissemos no artigo a respeito dos senhores feudais, esses eram, a bem dizer, monarcas de seus pequenos reinos, e tanto mais poderosos quanto mais altos eram seus títulos. Muitos duques nem sequer tinham suseranos, de modo que eram, de fato, reis, segundo o entendemos atualmente.
Ao que tudo indica, foi ao casar com a senhora Engelrada que Tegrimo recebeu a posse e o governo de Modigliana, e, consequentemente, o condado. Foi por via feminina que os Guidi alcançaram o posto principesco de hierarquia que a família conseguiu manter de fato durante tanto tempo depois disso.
Ou seja, o posto herdado pelo conde Guido Guerra III, embora herdado por ele sempre por via masculina, indicava uma dinastia surgida por meio de uma mulher. A fonte de onde citamos a história de Tegrimo afirma mesmo que é Engelrada a verdadeira pessoa a dar origem à família Guidi, e dá a entender que Tegrimo foi ao seu tempo uma personalidade quase irrelevante.
De modo que, ao cruzarmos essa informação com a história dos descendentes de Guido Guerra III, nos parece razoável crer que as filhas desse poderoso senhor herdaram também a dignidade do pai. Como insinuamos no post sobre o parentesco entre os Cavalcanti e os Guidi, de onde teriam os Cavalcanti, até então uma família pouco conhecida e pouquíssimo documentada, uma família cuja riqueza provavelmente tinha origem mercantil e não de um passado guerreiro, como essa família ganhou destaque o suficiente para que houvesse filhos de Iannis Leti exercendo o cargo mais alto da administração de Florença? Parece-nos razoável acreditar que essa visibilidade dos Cavalcanti fosse herdada, na verdade, dos Guidi, embora o título de conde e de príncipe não houvesse historicamente acompanhado os meus antepassados. O que propomos aqui, porém, é que não há por que esse título não houvesse passado aos Cavalcanti. E isso explica por que, na verdade, sou príncipe por direito de sangue.
E mais uma vez aqui talvez você diga que a minha afirmação transforma em príncipes a boa multidão de gente. Mas o fato é que, embora eu não tenha soberania sobre nada e nem pretenda ter, sou por herança familiar um príncipe feudal.

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Atenciosamente,

Filipe Cavalcante


Referências que consultei:

GENI. contessa Gualdrada Guidi. Disponível em: https://www.geni.com/people/Gualdrada-Guidi/6000000100082504307?through=6000000122451193867 . Acesso em 05.09.2022
MARROCCHI, Mario. GUIDI, Guido (Guido Guerra III). Disponível em: https://www.treccani.it/enciclopedia/guido-guidi_%28Dizionario-Biografico%29/ . Acesso em 06.09.2022
WIKIPEDIA. Tegrimo Guidi. Disponível em: https://it.m.wikipedia.org/wiki/Tegrimo_Guidi . Acesso em 11.09.2022

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