O bastardo preferido de D. Dinis

(D. Afonso Sanches, ilustrado na obra Genealogia dos Reis de Portugal, de autoria de Antônio de Holanda. Fonte da imagem: Wikimedia Commons, a)

Um capítulo importante da História dos nossos antepassados é aquele que se refere a um destacadíssimo nobre português do século XIV. Da prole desse homem veio uma parte considerável do legado dinástico herdado por esta família - e não só por esta, mas por muitas outras do Brasil, e, mais especialmente, do Nordeste.
Afonso Sanches era filho natural de D. Dinis, o sexto rei da dinastia de Borgonha. D. Dinis ficou conhecido por ter incentivado o trabalho no campo, o que lhe valeu o codinome de o Lavrador. (AMEAL, p. 123) Fernando Pessoa, no clássico Mensagem o chama de "o plantador de naus a haver". Isso é uma referência ao cultivo de pinhais incentivado pelo rei. Para que as áreas férteis de Leiria não fossem invadidas pelas dunas impelidas pelos ventos marítimos, D. Dinis fez plantar imensos pinhais para fixar a terra arenosa. Sem que ele soubesse ou planejasse, essas novas áreas verdes geraram a madeira mais tarde usada na fabricação de navios, nos quais Portugal se lançou à era das Grandes Navegações. (AMEAL, p. 123)
D. Dinis é também lembrado como o Rei Trovador. (ESCOLA) De fato, o rei é autor de vários poemas, no âmbito da escola medieval de literatura chamada Trovadorismo. Seu reinado favoreceu o surgimento de vários trovadores, cujas obras estão entre as mais antigas registradas em língua portuguesa. E mesmo num universo de tantos autores, o rei se destacava, não apenas por ser o rei, mas por seu próprio talento. O escritor e historiador João Ameal é quem diz (p. 127) que D. Dinis não apenas era poeta como era o melhor poeta da península em sua época.
Outra matéria em que D. Dinis foi prolífico foi em gerar filhos. Além daqueles que resultaram de seu casamento com a rainha, D. Isabel de Aragão, o rei foi pai de vários outros, frutos dos relacionamentos com diferentes amantes. Um desses filhos, e talvez o mais famoso deles, foi Afonso Sanches.
Afonso Sanches nasceu em alguma data antes de 1289. Seu nascimento, bem como o de outros dois filhos conhecidos de fora do casamento do rei é anterior ao de D. Constança, a filha mais velha da rainha. (PIZARRO, p. 189)
A mãe de Afonso Sanches era Aldonça Rodrigues de Telha, de quem não se sabe muito. O que dela se sabe é que, beneficiada pela condição de amante do rei, obteve algumas ricas propriedades, e pouco mais se sabe além disso. (PIZARRO, p. 189)
Quanto a Afonso, já em 1291, ainda criança, era senhor de várias propriedades, doadas a ele por seu pai, todas sob administração de seu tutor Pero Afonso Ribeiro. (PIZARRO, p. 189) Sobre a participação da mãe na criação do filho, não há muitas informações. A designação de um tutor para cuidar dos interesses dele até à idade adulta parece dar a entender que, a partir de um determinado momento, Afonso passou a crescer separado de sua mãe. Ser ele separado dela, no entanto, estava de acordo com a cultura de criação da juventude nobre na Idade Média, quando era normal que os meninos servissem na casa de um senhor como pajens, até depois serem feitos escudeiros e depois cavaleiros. No costume seguido no contexto dos séculos XIII e XIV, os meninos eram separados da mãe aos sete anos, para estarem sob a responsabilidade de um tutor. Esse tutor deveria dar ao rapaz a educação necessária e gerir seu patrimônio até que o tutelado alcançasse a vida adulta - que, no século XIII, começava aos 14 anos. (PARRA, p. 42 e 44) Ou seja, Afonso era uma criança quando saiu da casa de sua mãe, para ser educado por seu tutor até pelo menos os anos iniciais de sua adolescência.
No entanto, não permaneceu sob a tutela desse homem até os 14 anos, como seria normal. Antes que Afonso completasse essa idade, ficou determinado que ele deixasse Pero Afonso e se instalasse com a família real na mesma casa, sob a tutela de sua madrasta, a rainha D. Isabel. Ele e dois de seus irmãos igualmente bastardos foram entregues aos cuidados de tal senhora no ano de 1298. (PARRA, p. 45)
Como dissemos, era comum que os rapazes da nobreza recebessem a sua educação na casa de um grande senhor. No caso de Afonso, porém, a nobre casa em que ele cresceu foi, como estamos vendo, a de seu próprio pai. A tradição atribui à rainha D. Isabel a iniciativa de trazer para a corte, para crescerem e serem educados junto com seus próprios filhos, os filhos bastardos do marido. (AMORESE) Isso deu a oportunidade a Afonso Sanches, e também a outros de seus irmãos, de receberem a mesma instrução e quase os mesmos privilégios que os dois filhos legítimos de D. Dinis.
(Uma observação: Os termos "bastardo", "legítimo" e "ilegítimo" usados para se referir aos filhos são hoje anacrônicos, e até mesmo um tanto preconceituosos. Na legislação brasileira, bem como nas de outras nações modernas, não se faz mais diferença entre filhos nascidos no casamento ou não; nas duas situações de vida, os filhos tem iguais direitos. No entanto, como estamos nos referindo aqui a instituições do passado remoto, em que tais distinções eram relevantes, usaremos vez por outra essas palavras. Isso não significa que apoiamos qualquer identificação retrógrada a respeito da condição dos filhos. Não encontramos, porém, muitos sinônimos não ofensivos para essas palavras. "Adulterino" não seria exato, pois não incluiria os filhos anteriores a um casamento. "Filho natural" sim sempre foi um eufemismo comum e mais exato para "bastardo", embora, na realidade, os filhos do casamento também sejam naturais. De modo que, enfim, optamos por usar os termos tradicionais, de significado facilmente compreensível.)
Além de ter a chance de crescer com os irmãos, o pai e a madrasta, Afonso foi reconhecido como filho legítimo por seu pai, em documento de 8 de maio de 1304. (PIZARRO, p. 189) Pelas datas se conclui que era um adolescente ou pouco mais que isso quando foi legitimado. É possível que daí, desse reconhecimento público de paternidade, lhe tenha vindo o Dom com que é lembrado, evocativo da realeza lusa - Dom Afonso Sanches. Ser legitimado o colocava praticamente na condição de infante, ou seja, de príncipe não necessariamente herdeiro do trono português, como se fora nascido do casamento.
No mesmo ano em que foi legitimado, Afonso Sanches também se casou. Sua esposa foi Teresa Martins, e a tradição diz que foram educados juntos na corte. O que se sabe é que se conheciam desde muito jovens. Ela era filha de João Afonso Tello, senhor de Albuquerque, e de Teresa Sanches, que era filha bastarda de Sancho IV de Castela. (PARRA, p. 95) Ou seja, Teresa já vinha de um núcleo de nobreza cuja cultura era garantir o futuro dos bastardos dos reis casando-os entre grandes senhores.
A literatura atribui a existência de uma grande proximidade entre o rei e seus filhos bastardos. E costuma-se dizer que o filho mais próximo de D. Dinis fosse Afonso Sanches. A convivência possibilitada por ele ter crescido na corte se transformou em uma afinidade de gostos e de ação. O filho se tornou um dos conhecidos poetas trovadores da corte do pai, assim como o próprio. E sobrevivem hoje ainda 15 poemas escritos por Afonso Sanches, registrados no Cancioneiro da Ajuda, célebre coletânea medieval de cantigas trovadorescas. O poema abaixo, inserido na tendência das chamadas canções de amor, dá um exemplo do estro desse versador.

De vos servir, mia senhor, nom me val,
pois nom atendo de vós rem e al
sei eu de vós: que vos ar fez Deus tal
que nunca m'al faredes; e por en,
quer me queirades, senhor, bem, quer mal,
pois me de vós nom veer mal nem bem,
  
pois de vos servir hei mui gram sabor,
nom atendo bem do grande amor
que vos eu hei, ar sõo sabedor
que nunca m'al havedes de fazer,
quer me queirades bem, quer mal, senhor,
pois mal nem bem de vós nom hei d'haver,
  
pois de vos servir é meu coraçom
e nom atendo por en galardom
de vós; ar sei, assi Deus me perdom,
que m'al nom faredes por en, senher,
quer me queirades bem, quer mal, quer nom,
pois eu de vós mal nem bem nom houver.
(SANCHES, 2012)

A princípio, o poema acima é de difícil leitura, por usar o português corrente no século XIV. Nele o eu-lírico se queixa de uma senhora (que ele chama senhor, de acordo com a linguagem de então) por quem ele tem sentimentos. No entanto a senhora não lhe corresponde: "pois mal nem bem de vós nom hei d'haver", como ele diz. Ela não o quer mal, mas também não sente por ele nenhum afeto especial. Ao mesmo tempo, ele brinca com o trocadilho entre "fazer mal" e "fazer-m'al", ou seja, fazer-me algo, fazer-me alguma coisa. É uma canção com um toque de ironia. A amada não pretende lhe fazer mal, mas ao mesmo tempo o faz, por não fazer "al". É verdade que é uma cançoneta sobre o mesmo tema repetido à exaustão pelos poetas do Trovadorismo, qual seja, o amor não correspondido e ainda assim colocado sobre um pedestal, sempre direcionado a uma senhora de valor superior. Ainda assim, não se deixa de notar na pequena obra sobrevivente de D. Afonso Sanches, assim como na do seu pai, os traços próprios de inteligência e sensibilidade.
A morte do sogro de Afonso Sanches, acontecida não muito tempo depois de seu casamento, lhe trouxe as primeiras dificuldades com familiares próximos. João Afonso Tello deixou duas filhas como herdeiras, ambas casadas. E os maridos de ambas entraram em conflito com respeito à divisão dos quinhões da herança. Instalou-se uma disputa judicial entre ambos, que só foi resolvida alguns anos depois, em 1310. A sentença, de 3 de janeiro desse ano, foi proferida pelo rei, e acabou concedendo uma parte maior da herança a Afonso Sanches, inclusive o estratégico domínio de Albuquerque. (PARRA, p. 96) Por causa dessa sentença, D. Dinis foi largamente acusado de favoritismo, em especial por Martim Gil, o concunhado que se sentiu desfalcado com a divisão do espólio.
(O Castelo de Albuquerque atualmente. Fonte da imagem: Wikimedia Commons, b)

Outro fato que aponta para a predileção de D. Dinis por Afonso Sanches é ter este recebido do pai o cargo mais importante da corte. Em 1303 ele já aparecia em documentos da cúria régia. E em 1312 o rei o designou como mordomo-mor. (PIZARRO, p. 189-190) Fazendo-se um paralelo com as monarquias modernas, o mordomo-mor do século XIV seria algo parecido com o primeiro-ministro da atualidade. Afonso Sanches estava, portanto, no cargo de maior poder na corte, com exceção apenas do próprio rei.
Essa posição privilegiada pelo afeto e confiança entre pai e filho, e ainda mais confirmada pela nomeação para o alto cargo, provocou o ciúme de outro D. Afonso - o filho legítimo, não bastardo, de D. Dinis. A esse ciúme, somou-se a incitação de alguns cortesãos, descontentes com a política do rei. D. Dinis vinha trabalhando para aumentar o poder central, em sua pessoa, o que mexia com as suscetibilidades dos senhores feudais. Isso incomodava muitos nobres. E muitos desses encontraram ouvido atento às suas queixas no ressentido D. Afonso, herdeiro do trono, mas inseguro de suas prerrogativas. (PIZARRO, p. 190)
Na verdade, nos anos iniciais da primeira dinastia portuguesa, ainda não era claro o processo de sucessão no trono. Até a regra da primogenitura, que depois se estabeleceu na maioria dos países europeus, ainda não era a norma institucional. Entre os seus antepassados visigodos, a ascenção ao trono se dava por eleição ou aclamação. Mas nas primeiras gerações de reis portugueses, cada rei havia deixado claro quem seria o seu sucessor, e isso havia garantido a sucessão mais ou menos tranquila até então. Igual cuidado teve D. Dinis. Ele sempre havia deixado claro que o infante D. Afonso, único filho homem de seu casamento, era seu herdeiro real, até mesmo mencionando isso em documentos, quando se referia a ele como “o Inffante Dom Affonso meu filho primeiro herdeiro”. (PARRA, p. 23-24) Não havia dúvidas de que esse D. Afonso seria rei depois de seu pai. Todas as garantias de legitimidade o favoreciam.
Como dissemos, Afonso Sanches havia sido legitimado por decreto de seu pai. Esse tipo de legitimação, porém, tinha, digamos, efeitos apenas civis, nunca podendo ser equiparada à filiação legítima, de filho nascido na constância de um matrimônio celebrado pelas leis da Igreja. (PARRA, p. 30) Vale lembrar que o próprio D. Dinis nasceu ilegítimo segundo o direito canônico. Seu pai, D. Afonso III, viveu por cinco anos num segundo casamento, não reconhecido pela Igreja, e, portanto, em bigamia, pois sua primeira esposa era viva; e mais cinco após o falecimento dessa, até que o Papa se resolvesse a lhe dar seu reconhecimento. Em 1263, porém, esse segundo casamento foi reconhecido por bula papal, e foi assim que os filhos foram reconhecidos como legítimos nos dois sistemas legais. (AMEAL, pp. 104-105) Afonso Sanches não gozou da mesma situação.
Ainda assim, o infante D. Afonso, veio a ficar convencido de que o pai tencionava entregar o reino a Afonso Sanches. Dando ouvidos aos nobres insatisfeitos com o governo do rei, e em especial a um certo Gomes Lourenço de Beja. Outro grande incentivador da rebelião de D. Afonso foi Martim Gil. Esse era o concunhado de Afonso Sanches, que se sentia lesado na questão da herança do sogro. Esse mesmo Martim Gil havia sido aio do infante - função semelhante à de tutor -, e, portanto, é natural pensar que tivesse considerável influência sobre as opiniões de D. Afonso. (PARRA, p. 76)
De modo que os ciúmes do infante somados à insatisfação da nobreza levaram a um conflito interno no reino. A chamada Guerra Civil de 1319-1324 pôs em confronto pai e filho. De início, D. Afonso buscou apoio de parentes para tentar convencer seu pai a lhe entregar o governo do reino. Isso, segundo os códigos de obediência filial da época, era uma afronta. Os filhos deviam aos pais uma obediência semelhante à dos vassalos aos seus suseranos. D. Dinis respondeu a essas invectivas verbais, recebidas na forma de cartas de alguns seus familiares, com um pedido de que seu filho se conformasse à submissão que lhe devia como a um senhor.
Para mais acalmar os ânimos, o Papa João XXII mandou publicar em Portugal uma carta dirigida à nobreza, em que garantia que D. Dinis nunca lhe fizeram qualquer pedido no sentido de legitimar seus bastardos também perante a lei canônica. Insistia mais a carta em que o infante cessasse as mostras de hostilidade para com o seu pai e senhor, por dever filial e pela paz no país.
D. Afonso não deu ouvidos às instâncias de seu pai e nem do Papa. Em 1321 decidiu tomar a cidade de Coimbra, o que de fato fez. E nos meses seguintes fez outras importantes cidades fortificadas caírem pelas armas.
O rei reagiu, chegando a reaver com luta algumas de suas cidades. O conflito já chamava a atenção do rei de Aragão - que temia uma aliança entre D. Dinis e o rei de Castela - e também do Papa. Ambos enviaram mediadores para tentarem celebrar a paz entre pai e filho. No entanto, antes que esses chegassem a D. Dinis, já a paz estava feita. A rainha D. Isabel e Pedro Afonso, o bastardo mais velho do rei, haviam insistido numa pacificação. Vale lembrar que esse Pedro Afonso foi sempre amigo do infante, e partidário dele na disputa. Para fazer tal paz, D. Dinis teve que perdoar o filho e seus apoiadores, e ceder a ele algumas cidades.
A paz, porém, não durou muito. No ano seguinte, em 1323, D. Dinis convocou cortes em Lisboa. Tinha a intenção de pacificar alguns assuntos legais pendentes, em especial relacionados ao conflito com o infante herdeiro. D. Afonso, no entanto, desafiando o pai, não compareceu. Fingindo ir até Lisboa em uma romaria, o infante se fez acompanhar de alguns asseclas mal-afamados, e se temia que ele pretendesse tomar a cidade. No entanto, seu esforço foi baldado. As forças do rei e do filho rebelado se bateram nas proximidades de Lisboa, e D. Afonso foi impedido de provocar maiores desordens por ora.
Mesmo com a derrota do infante, porém, a paz mesmo só veio em 1324, com a assinatura de um tratado que pôs fim à guerra civil em 26 de fevereiro. Como condições, ficaram acertadas a destituição de Afonso Sanches do cargo de mordomo-mor e seu desterro para Castela.
Pouco depois disso, em 7 de janeiro de 1325, D. Dinis faleceu, e o infante, como era de se esperar, o sucedeu como D. Afonso IV, incontestável. (PARRA, pp. 77-82)
Não foi, porém, o fim das perseguições para Afonso Sanches.
Este, exilado em Castela, estava ainda próximo do poder, pelo seu parentesco com os reis castelhanos. Isso o pôs envolvido nas questões políticas daquele reino durante o tempo em que permaneceu ali. Importa lembrar também que a possessão principal de Afonso Sanches, o senhorio de Albuquerque, ficava em Castela. Alguns bens valiosos, porém, incluindo terras e castelos, haviam ficado no agora hostil Portugal. E esses foram objeto de ainda mais uma disputa.
Pouco depois de sua ascenção, ainda em 1325, D. Afonso IV confiscou todos os bens portugueses pertencentes a seu irmão exilado. Afonso Sanches tentou demovê-lo por palavras, alegando que não havia razão para essa medida. O novo rei, porém, não fez caso desses rogos. Foi por isso que, em protesto pelo esbulho que se lhe fazia, o senhor de Albuquerque invadiu Portugal com seus homens de armas, realizando ataques na região de Bragança.
Em retaliação, D. Afonso IV cercou o castelo de La Cordosera, pertencente ao irmão. A fortificação não pôde resistir ao cerco e acabou sendo depois destruída. O nobre bastardo, quando desse cerco, se encontrava doente, e nada pôde fazer para impedir essa derrota. Mas, de todo modo, esse acabou sendo o último confronto entre os dois irmãos.
Em março de 1328, em Escalona, Afonso Sanches, senhor de Albuquerque e vassalo do rei Afonso XI de Castela, faleceu. Seu corpo foi sepultado em Portugal, em Vila do Conde, no Mosteiro de Santa Clara, que ele mesmo mandara edificar. Por volta de 1350 ou 1351 foi a vez de Teresa Martins ser também ali enterrada. No local pode ser lida a seguinte inscrição, citada aqui em parte: 
Em esta Capela jazem o muito esclarecido Príncipe D. Afonso Sanches, filho de El-Rei D. Dinis, de Gloriosa memória, sexto Rei deste reino de Portugal, com a muito Excelente Senhora Madama D. Teresa Martins, neta de El-Rei D. Sancho: Fundadores desta Santa Casa a qual mandou fazer para eles a muito virtuosa Senhora D. Isabel de Castro, primeira Abadessa da Observância desta Santa Casa em 1526, e depois a mandou dourar e por azulejos a muito religiosa D. Catarina de Lima, sendo abadessa no ano de 1623.
(PARRA, pp. 102-105)
(Túmulos de Afonso Sanches e Teresa Martins. Fonte da imagem: Wikimedia Commons, c)

É interessante a menção de Afonso Sanches como príncipe. À época, príncipes não eram os filhos dos reis, como nas monarquias modernas. Como dito neste artigo várias vezes, os filhos legítimos do rei português eram infantes. Posteriormente, o termo infante veio a designar principalmente os filhos não herdeiros do trono. (COSTA, p. 57) Porém a referência a Afonso Sanches como príncipe parece se referir a ele como senhor de um principado. No caso, seu principado seria Albuquerque, seu senhorio mais destacado. A própria ação militar de Afonso, tendo Albuquerque como base, mostra a relativa independência com que um senhor feudal movia os seus assuntos no século XIV. Seria ele um pretendente justo ao trono português? Talvez pudesse tê-lo sido, se uma rebelião o houvesse conduzido ao poder em seu país. Ele poderia ter suscitado argumentos para isso. Mas tal rebelião implicaria em desobediência à vontade expressa de seu pai, de que o infante D. Afonso fosse o herdeiro do trono. Tendo em vista o histórico de proximidade e obediência de Afonso Sanches para com D. Dinis, essa alternativa não teria parecido muito plausível. Ademais, como já dito, não havia legitimação canônica para o nosso bastardo, e, sem essa, dificilmente a Igreja teria abençoado tal ascenção; e a validação papal era muito importante na época. É verdade também que a ausência da validação papal não impediu o casamento civil e de fato de D. Afonso III e D. Beatriz durante dez anos, e a gestação de D. Dinis. Como dissemos, esse também era bastardo quando nasceu, sendo legitimado retroativamente perante a legislação religiosa.
Afonso Sanches e Teresa Martins tiveram três filhos, mas apenas um sobreviveu e chegou à idade adulta. João Afonso foi o herdeiro de Albuquerque, e daí se chamar João Afonso de Albuquerque. (PARRA, p. 95) Quanto a este, de seu próprio casamento teve apenas um filho. Esse filho, no entanto, morreu sem descendência. O resultado da falta de descendência legítima foi Albuquerque reverter para a Coroa castelhana. (PIZARRO, pp. 193-194)
No entanto, João Afonso de Albuquerque teve muitos filhos ilegítimos, e esses adotaram o toponímico de Albuquerque como sobrenome. (PARRA, p. 35-36) Essa descendência foi a origem da família Albuquerque em Portugal.
A despeito da origem ilegítima, os Albuquerque vieram a ser uma conhecida família de fidalgos. Serem descendentes de D. Dinis lhes valia uma condição privilegiada na sociedade de estamentos. E, algumas gerações depois, dois membros dessa família vieram se estabelecer na colônia portuguesa no Brasil, dando origem aos Albuquerque brasileiros. Na verdade, alguns genealogistas em nosso país afirmam que todas as famílias tradicionais do Nordeste devem seu legado a Jerônimo de Albuquerque, o primeiro patriarca desse sobrenome no Brasil.
Nós somos descendentes de Jerônimo de Albuquerque, e este o era de Afonso Sanches. Abaixo transcrevemos o ramo da árvore genealógica que liga D. Dinis a Jerônimo, e, num artigo futuro, falaremos mais sobre esse fidalgo do século XVI. A sequência genealógica abaixo foi transcrita com base nas informações do FamilySearch.

D. Dinis I, num relacionamento com Aldonça Rodrigues de Telha
D. Afonso Sanches, cc. (casado com) Teresa Martins de Menezes
D. João Afonso de Albuquerque, num relacionamento com Maria Rodrigues Barba
D. Fernando Afonso de Albuquerque, cc. Laura
Teresa de Albuquerque, cc. Vasco Martins da Cunha
Isabel de Albuquerque, cc. Gonçalo Vaz de Mello
Leonor Vaz de Albuquerque, cc. João Gonçalves de Gomide
João de Albuquerque, cc. Leonor Lopes Gonçalves Leão
Lopo de Albuquerque, cc. Joana de Bulhões
Jerônimo de Albuquerque, o que se mudou para o Brasil

Um fato interessante que se nota nessa árvore é a transmissão do sobrenome e da fidalguia também por via materna. Embora os Albuquerque, de modo geral, não fossem nobres titulados, eram uma gente conceituada. Muitos dos homens ocupavam cargos de destaque na administração. As mulheres se casavam com homens importantes. E o fato de uma delas se ter casado com um homem em alto cargo foi o que ocasionou a vinda dessa família para este lado do Atlântico. E aqui essa estirpe veio se encontrar com a antiga estirpe comital dos Cavalcanti, numa mescla de diferentes etnias e diferentes legados. Mas sobre esse encontro falaremos em outro artigo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMEAL, João. História de Portugal: das origens até 1940. Editora CDB. Rio de Janeiro: 2022
AMORESE. D. Afonso Sanches. Disponível em: http://www.amorese.com.br/GENEALOGIA/ps32_411.html . Acesso em: 09.11.2023
COSTA, Antonio Luiz M. C.. Títulos de Nobreza e Hierarquias. 1a. edição. São Paulo: Draco, 2016
ESCOLA, Brasil. "Dom Dinis"Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/biografia/dom-dinis.htm. Acesso em 07 de novembro de 2023.
FAMILYSEARCH. Jerônimo de Albuquerque. Disponível em: https://www.familysearch.org/tree/person/LKVM-JBT . Acesso em: 14.11.2023
PARRA, Ana Raquel da Cruz. A Paternidade na Idade Média: o caso de D. Dinis. Tese (Mestrado em História Medieval) - Faculdade de Letras, Universidade de Lisboa, Lisboa, 2018. Disponível em: http://hdl.handle.net/10451/32870 . Acesso em: 15.11.2023
PESSOA, Fernando. Mensagem. Disponível em: http://arquivopessoa.net/textos/1292 . Acesso em: 07.11.2023
PIZARRO, José Augusto De Sotto Mayor. Linhagens Medievais Portuguesas: Genealogias e Estratégias (1279-1325) - Volume I. Porto: 1997. Disponível em: https://hdl.handle.net/10216/18023 . Acesso em: 08.11.2023
SANCHES, Afonso. De vos servir, mia senhor, nom me val. Littera-FCSH: 2012. Disponível em: https://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=381&pv=sim . Acesso em: 10.11.2023
WIKIMEDIA COMMONS. File:D. Afonso Sanches, senhor de Albuquerque - The Portuguese Genealogy (Genealogia dos Reis de Portugal).png. Disponível em: https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:D._Afonso_Sanches,_senhor_de_Albuquerque_-_The_Portuguese_Genealogy_(Genealogia_dos_Reis_de_Portugal).png# . Acesso em: 07.11.2023, a
WIKIMEDIA COMMONS. Arquivo : Alburquerque Castillo 039.jpg. Disponível em: https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:Alburquerque_Castillo_039.jpg#mw-jump-to-license . Acesso em: 16.11.2023, b
WIKIMEDIA COMMONS. File:Túmulos de D Afonso Sanches e Teresa Martins Igreja Santa Clara Vila do Conde IMG 3159.jpg . Disponível em: https://commons.m.wikimedia.org/wiki/File:T%C3%BAmulos_de_D_Afonso_Sanches_e_Teresa_Martins_Igreja_Santa_Clara_Vila_do_Conde_IMG_3159.jpg . Acesso em: 1°.12.2023, c

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Le Stinche - Castelo ancestral dos Cavalcanti

Como me tornei um lord