O conto de Júlio e Eleonora - 3

Um conto de amor, castelos e alegoria

Anjo

Acredito que você já compreendeu, pela minha insinuação no começo desta minha narração, que esta é uma história em que acontecem coisas fora do que se considera a ordem natural das coisas que estamos acostumados a ver. Estamos acostumados ao mundo físico, ou seja, ao mundo visível. Existem realidades além do mundo físico. E boa parte dessa realidade nem chega a ser sobre-humana.
As visitas de Eleonora passaram a ser um hábito. E cada vez a amizade entre ela e o nosso jovem monge crescia. Sem perder a admiração que sentia na presença dela, ele já não ficava tão vexado diante da moça. Ia se tornando natural a relação dele com o inefável que era ela. Porém, como eu já disse, era tudo muito ingênuo. Nem o próprio abade chegava a ver problema naquela amizade, tamanha era a inocência com que se tratavam ambos os jovens.
Júlio andava mais alegre, mais sorridente. Tinha um espírito de criança, e começava a descobrir algo novo naquela nascente amizade.
Certa noite, Júlio encontrava-se sozinho em sua cela. Todo o convento dormia, fazia o maior silêncio. Lá fora a noite estava bem clara, e pela janela da cela, a luz do luar penetrava no ambiente, formando uma agradável meia-luz. Era um momento tranquilo e sonolento. Nosso monge, no entanto, nada tinha de tranquilo nem de sonolento. Ele se revolvia na sua cama, sem conseguir pregar os olhos. Sua mente fervia, revirando pensamentos inquietantes. Doces mas de certa forma maus e pecaminosos até. 
Subitamente Júlio prestou atenção em um dos cantos da cela onde a luz do luar não chegava. Nesse canto escuro, notou um vulto. E aquilo foi o maior susto do mundo para ele. Como aquela pessoa entrara ali? Quem era aquela pessoa? Quem era?
O vulto avançou para o raio de luz pálida que entrava pela janela, e Júlio pôde distinguir. Era uma mulher. Era bela, de uma beleza altiva. Fitava o rapaz com uma expressão muito grave. Era uma assombração? Um fantasma? Um demônio? O susto beirava o pavor. 
– Quem... Quem é você? – ele tremia da cabeça aos pés. Não podia se conter, sua voz tremia, suava frio, e tudo isso tinha começado num instante. 
– É assim que recebe o anjo que protege você? – o vulto de mulher respondeu, fria e duramente. 
– Anjo? – o rapaz estranhou, nem um pouquinho mais calmo, tecendo raciocínios confusos e sem nexo – Você parece tão palpável como um ser humano. 
– O convento está todo fechado, meu caro. E a cela também. Verifique a própria porta, e verá que não há meio de um ser humano entrar. – a mulher estava calma, com um meio sorriso de desdém. 
Júlio verificou a porta. Estava trancada por dentro, exatamente como ele a havia deixado. 
– Isso prova que não é humana. Mas não prova que é um anjo – concluiu o rapaz, dirigindo-se à mulher. – Poderia muito bem ser um demônio. 
– Pensei que a santidade dos conventos impedisse a entrada de demônios. – disse ela com sarcasmo. – Você vê em mim algum chifre?  Tenho pés de bode? Cheiro de enxofre? – Isso estava longe da verdade. Como eu disse, a mulher era bela, ainda que sua presença não fosse exatamente agradável. O aroma que enchia o ar enquanto ela estava ali era algo que Júlio só podia comparar a certo perfume que sentira exalar de uma muito nobre senhora; mas este que sentia agora era imensamente mais elevado, como seria de se esperar de um perfume celestial. Ela tinha um tom de soberba na voz e no olhar, mais ou menos como tem um rico soberbo quando olha os pobres que lhe pedem favores. Ainda assim, era uma presença esplêndida. Um demônio não era. 
– Vim falar-lhe do mal que aflige você. – prosseguiu ela. – E trazer a única real solução. Você deve acatá-la. 
– Que mal é esse, senhora? – com o correr do diálogo, o pavor passara, embora Júlio ainda se conservasse bastante assustado. 
– Você ama Eleonora. Esse é o mal.
Aquilo era uma calúnia. Como podia ser verdade? Ele era um frade, um religioso, fizera um voto, seria celibatário pela vida toda. Vivia apenas para o que era ideal e espiritual. Se tinha alguma afeição por Eleonora, era por que havia compatibilidade entre o gênio idealista dela e o seu. Tinha-lhe apreço como tinha aos irmãos frades.
No entanto, era verdade. E ele sabia que era verdade. Tão somente, aquilo era muito inédito para ele. Aquele tipo de afeição nunca lhe perpassara o coração. O amor romântico, conjugal, era, até então, desconhecido para aquele camponês tímido feito sacerdote de um mosteiro agradável porém frio. Mas, como eu já disse antes, nosso jovem nascera para a emoção e para a ação. 
O rapaz sentiu o baque daquela denúncia de si feita a si mesmo. Como nunca percebera? Ou talvez nem fosse isso. Talvez percebesse, mas negava a si próprio que aquilo fosse verdade. Era totalmente absurdo. Além de monge, ele vinha das camadas baixas. Era algo totalmente impossível. E, por isso, era forçoso que fosse impensável. 
– Sim, meu bom rapaz. Você ama Eleonora. E, como sabe, não existe maneira de realizar esse amor. Foi para isso que vim.
Júlio olhou para ela esperançoso de repente. Se havia uma saída, estava ali, diante dele. Aquele mensageiro celestial em forma de mulher trazia a solução, uma solução divina, sobre-humana e perfeita. 
– O sacerdócio, que você adotou, é uma barreira irremovível – prosseguiu ela. – A diferença social também, meu caro rapaz. Só há uma forma.
No entanto, o que a mulher acrescentou causou no seu coração o efeito de um ataque. Ela recuou de volta para a sombra onde estivera antes. Sacou do bolso um objeto reluzente, de lampejos prateados como o luar. Ergueu-o no ar e disse: 
– Esta é a única solução possível, meu rapaz. Aceite essa solução. Deixe-a penetrar seu coração. 
Então a mulher assustadora se dispersou no ar como a bruma quando sopra o vento. O objeto reluzente erguido não se moveu até que a imagem dela houvesse desaparecido. Quando ela não era mais visível, o objeto caiu, fazendo um som metálico no chão de pedra da cela. Júlio estava assombradíssimo. Antes que o torpor terminasse de passar, a curiosidade o puxou inexoravelmente para o objeto deixado, a solução possível. 
Era uma adaga.

(Continua)

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