Os senhores das tabas

(Guerreiro Tabajara em representação de Claude D'Abeville, de 1614. Fonte da imagem: Wikimedia Commons)

Antes da chegada dos europeus à América do Sul, as nações indígenas que viviam no que hoje é o Brasil mantinham elaboradas estruturas sociais, e uma cultura rígida e tradicional, como é próprio das sociedades tribais. Assim como a Europa medieval, tradicional e rígida, pré-industrial, os povos indígenas no século XV eram sociedades em que se verifica aquilo que Durkheim chamou depois de solidariedade mecânica; ou seja, eram comunidades com laços muito fortes entre os indivíduos, e tradições arraigadas, tradições essas frequentemente religiosas, que ditavam às pessoas o senso de identidade. Por isso, não é de estranhar que os romancistas brasileiros do século XIX quisessem ver nos costumes indígenas um paralelo com a ética da cavalaria medieval.
Não nos deveria causar estranheza também saber que os indígenas cultivavam - e muitas nações indígenas ainda cultivam - a sua memória genealógica. O antropólogo Darcy Ribeiro, célebre estudioso dos povos indígenas do Brasil moderno, afirmou certa vez que Anakampuku, um dos muitos indígenas que conheceu, sabia listar 1100 nomes da sua própria genealogia recorrendo apenas à memória, num grau de detalhismo e extensão que faria inveja a qualquer nobre europeu. (RIBEIRO, in PROFESSOR MEM COSTA) No entanto, infelizmente, o sufocamento das culturas indígenas, com a chegada dos portugueses e outros a este continente, acabou por apagar definitivamente muito da memória que era preservada por aqueles povos apenas em forma oral.
No entanto, é verdade também que os indígenas, de um modo geral, resistiram à supressão do seu modo de vida, frequentemente por tentar se manter distante da civilização trazida pelos europeus. Embora por diversas vezes caçados e dizimados, muitos dos povos originários sobreviveram e mantiveram seus aspectos culturais principais, o que permite hoje ter uma ideia aproximada de como viviam aquelas gerações deles que se encontraram pela primeira vez com os brancos no século XVI.
Outra maneira de conhecermos os usos dos povos originários são os relatos dos cronistas que estiveram aqui no período. Alguns conviveram com os indígenas, e, embora as suas observações possam comumente estar eivadas de preconceitos, formam uma base válida para pesquisa, uma vez que se tome cuidado em extirpar-lhes o viés tendencioso.
No entanto, embora seja verdade o afastamento dos indígenas para se preservarem, o contato entre brancos e povos originários nem sempre foi conflituoso. São frequentes nos relatos dos primeiros tempos do Brasil as histórias de alianças entre nativos e europeus, bem como de pregação pacífica da religião católica. Não que tais contatos pacíficos tenham sido equânimes. Isso não afirmaremos. O tomamento sistemático da nova colônia era um processo de imposição; e, caso os indígenas quisessem ser aceitos pela sociedade colonial, tinham que se submeter, aceitar-lhe os costumes, as crenças, as práticas de trabalho, mesmo quando o subjugador o fazia na sincera convicção de estar realizando o bem aos ditos selvagens.
Algumas das alianças firmadas entre brancos e indígenas, além de facilitar a ocupação territorial, possibilitaram o nascimento dos primeiros mestiços, filhos de homens portugueses e mulheres indígenas. De certo modo pode-se afirmar que esses mestiços, que Darcy Ribeiro chamou, em seu livro O Povo Brasileiro, de "brasilíndios", foram os primeiros brasileiros.
Viemos falando aqui neste blog sobre a história de uma família, originada na Europa, e da qual há muitos membros hoje no Brasil. Ao chegar aqui, o sangue dessa gente veio se juntar ao de uma brava família de nativos. Antes, porém, de tratar dessa união, gostaríamos de falar algo a respeito do povo indígena do qual veio o legado e a história que também se juntou ao desse relato dinástico.
Quando se instalou na América portuguesa o sistema das capitanias hereditárias, viviam na costa brasileira principalmente os povos de língua tupi. (FERNANDES in HOLANDA, p. 84) Dentre esses povos estavam os chamados Tabajara. Segundo o romancista José de Alencar, nas notas do seu clássico Iracema, o designativo "Tabajara" vem do tupi taba, ou seja, aldeia, e jara, ou seja, senhor. Sendo assim, os Tabajara são os "senhores das tabas", os senhores das aldeias.
A notícia mais antiga desse povo é que, por volta de 1535, viviam em processos migratórios entre a margem sul do Rio Paraíba e a margem norte do Rio São Francisco. É um fato conhecido que era costume dessas comunidades de caçadores e coletores a mudança constante de local de morada. Outro fator para essas mudanças eram os frequentes conflitos com outros povos indígenas. Na verdade, esse estado de guerra contínuo cumpria um importante papel social para a identidade e autoafirmação daquelas nações valentes. No caso dos Tabajara, seu inimigo frequente eram os Potiguara. Quando o colonizador veio encontrar os Tabajara na região da Paraíba, em 1535, estavam eles fugindo dos seus oponentes, que os haviam expulsado do Vale do São Francisco. (BARCELLOS, a)
Aos colonizadores não passaram despercebidos os conflitos entre as diferentes nações indígenas. Na verdade, por diversas vezes se aproveitaram dessas diferenças para fazer alianças e colocar indígenas contra indígenas, conforme as conveniências da ocupação portuguesa. Um dos pesquisadores que consultamos diz que há mais que se falar em um etnônimo "tabajara" do que em uma etnia Tabajara. Isso se dá porque a denominação de "tabajara" foi consagrada pelos portugueses nos seus tratos com os indígenas do litoral pernambucano. Nas crônicas da colonizações daquela capitania, se vê que os portugueses fizeram distinção entre os Tabajara, os Potiguara e os Caeté. Como os Tabajara se tornaram seus aliados, em oposição aos Potiguara e aos Caeté, tidos como inimigos, os portugueses acabaram por denominar "tabajaras" aos indígenas aliados naquela localidade, mesmo aos que não fossem membros da mesma etnia. Tornou-se meio que uma denominação inexata e fluida. Quem deixasse de ser amigo dos portugueses deixaria de ser chamado por eles de tabajara, sendo essa palavra considerada uma denominação honrosa. (PAGANO)
[Uma nota: Sabemos da existência de uma convenção de 1953, formulada por um grupo de antropólogos, que definiu que os nomes de etnias indígenas brasileiras deveriam ser grafados sempre com inicial maiúscula e no singular, em textos acadêmicos. Sabemos também que, em textos não acadêmicos, tratando-se apenas das regras da gramática, é aceitável grafar os nomes das etnias no plural e com inicial minúscula, assim como se faz quando nos referimos a pessoas de qualquer nacionalidade. (CIPRO NETO) O Senado brasileiro, no Manual de Comunicação da Secom, recomenda o uso, em escritos oficiais, do plural e da inicial minúscula. (SENADO FEDERAL) Nós, no entanto, optamos pelo singular com inicial maiúscula, conforme a antiga convenção. Optamos por essa grafia porque a vimos usada nos textos da pesquisadora Eliane Silva de Farias Barcellos, citados aqui do site tabajarapb.com. Esse site é mantido por uma equipe Tabajara, e concluímos que, independentemente da gramática, seria respeitoso nos referirmos a esse povo como eles se referem a si mesmos.]
Já desde antes da chegada dos europeus, os Tabajara estavam concentrados principalmente onde hoje fica o estado da Paraíba. Mas, como dissemos, eles migravam de lá para o sul e de volta para lá, de modo que eram uma das principais nações indígenas na costa de Pernambuco no século XVI. Por isso é que eles foram uma das primeiras etnias nativas a terem contato com os invasores europeus chegados ao Nordeste brasileiro. Hoje, porém, não há mais comunidades Tabajara em Pernambuco. (FERREIRA) A pressão do contato com os lusos acabou por forçar a um novo processo migratório aqueles que não foram assimilados pela nova civilização.
A partir do período mais ou menos entre 1570 e 1572, vários grupos de língua tupi começaram a se deslocar buscando o interior ou outras regiões do litoral. Alguns desses grupos se fundiram ao longo dessa cooperação, e deram origem aos Tabajara da Serra da Ibiapaba, no Ceará. Nos dois séculos seguintes, a presença desse povo indígena naquela região ainda era bem marcada. (PAGANO) Esses povos, inclusive, serviram de inspiração e de matéria de pesquisa para o famoso romance Iracema, de José de Alencar.
No seu romance, Alencar cita vários costumes dos Tabajara, a partir da informação colhida dos cronistas do século XVI. É verdade que Alencar estava retratando uma visão idealizada dos povos originários. É verdade também que usou, para isso, de fontes documentais eurocêntricas - embora ele também cite nas suas notas fontes que eram atuais na sua época, como o poeta e pesquisador Gonçalves Dias. A crença geral nos dias de Alencar era que os povos indígenas estavam num processo de desaparecimento. Ainda assim, ele citou nessas notas vários costumes e crenças Tabajara, e nós gostaríamos de mencionar alguns deles.
Outro importante escritor, e este mais recente, que nos permite fazer observações sobre o modo de vida dos Tabajara é o sociólogo Florestan Fernandes. Embora os estudos desse autor fossem sobre os Tupinambá em geral, ou seja, os povos de língua tupi, o que ele disse abre consideravelmente nossos horizontes para entender a organização social desse povo específico. Muitos usos e costumes eram compartilhados por todas as nações Tupi, que, obviamente, tinham origem comum. Florestan também se baseou nas anotações dos cronistas do século XVI, para determinar como viviam os povos originários à época da chegada dos europeus. Entretanto, com o crivo sociológico e a visão do século XX, pôde fazer uma descrição um tanto mais isenta de vieses.
Florestan chama as nações de "tribos", colocando a palavra entre aspas. De fato, essa palavra não é mais usual para se referir aos povos indígenas do Brasil. O que ele chamou de "tribo" chamaremos de nação. Havia - como ainda há - várias nações Tupinambá. Cada uma delas estava organizada em comunidades menores, as aldeias, ou seja, as tabas. Cada taba era um pequeno núcleo de uma teia organizacional maior. Fazendo uma comparação com as estruturas administrativas da nossa cultura, as tabas seriam o equivalente a cidades dentro de um país, sendo cada nação indígena, como a Tabajara, algo semelhante ao nosso conceito de um Estado-nação moderno. As diversas tabas da mesma nação eram unidas por laços de parentesco e cooperavam entre si. Estavam estabelecidas próximas umas das outras, de modo que a nação cobria e controlava um determinado território. Quando era o tempo das migrações, toda a nação migrava junta. (FERNANDES in HOLANDA, pp. 84-85) Havia chefes das aldeias, que tomavam decisões em conselhos, tendo por base as tradições, o que os antepassados da nação haviam feito em situações semelhantes. Havia também conselhos dos chefes das diferentes tabas, para quando a decisão a ser tomada afetava a nação inteira. (FERNANDES in HOLANDA, p. 91)
A economia dos Tabajara, como a de outros povos Tupi, era baseada na horticultura, na coleta, na caça e na pesca, na forma de economia de subsistência. O esgotamento periódico dos recursos naturais era um dos fatores para suas constantes migrações. No entanto, conforme os terrenos antes utilizados voltavam a ser férteis para a agricultura e a caça, os Tabajara também voltavam ao local. Estavam sempre retornando para os mesmos lugares antes ocupados, num tipo de controle não intencional do uso do meio-ambiente. (FERNANDES in HOLANDA, p. 84)
Como o sistema de produção de uma economia de subsistência, e ainda mais com o pouco material tecnológico de que os indígenas dispunham, produzia em um ritmo pequeno, a cooperação era muito importante. Para arrancar o máximo do potencial de cada atividade, como o plantio ou a coleta, era preciso mobilizar um grande número de pessoas. E a comunidade, de modo geral, atendia de bom gosto quando convocada para o esforço produtivo. Isso criava um senso de unidade. Todos poderiam usufruir dos bens gerados; todos sabiam que poderiam contar com os vizinhos para trabalhar consigo; todos deviam favores aos vizinhos que já os haviam ajudado antes nas diversas atividades. Havia roças e objetos particulares. Mas os meios de vida produzidos pertenciam a todos. (FERNANDES in HOLANDA, pp. 87-88)
A divisão do trabalho obedecia à mesma regra simples das sociedades de solidariedade mecânica: por sexo e por idade. Entre as atividades femininas estavam as relacionadas à agricultura, à coleta e aos serviços domésticos. Aos homens cabia a derrubada e a preparação da terra para o plantio, além da caça, da pesca, da produção de armas e da construção. As funções xamanísticas também eram atividades masculinas. À mulher cabia uma pesada carga de tarefas, embora houvesse uma interdependência entre atividades masculinas e femininas. (FERNANDES in HOLANDA, pp. 86-87)
A religião dos Tabajara tinha vários dos mesmos elementos da de outros povos de língua tupi. Tupã era o deus principal de seu panteão. E, na verdade, para os Tabajara, a mata toda estava recheada de espíritos. Entre estes estava o Anhangá, um espírito do mal, um fantasma invisível, que os missionários católicos posteriormente tenderam a associar ao Diabo - assim como Tupã era associado ao Deus cristão. Além desses, acreditavam no Jurupari, que Alencar traduz como sendo um demônio. Na floresta se escondiam os caa-pora, que o uso em português transformou na palavra caipora - espíritos maus da floresta. Também havia os curupiras, espíritos travessos, que a crença representava como tendo forma e comportamento de crianças.
Os sacerdotes Tabajara, como os de outros povos, eram os pajés - alguns escritores antigos grafam piagas. Boa parte do ofício do pajé era realizado sob efeito da bebida da jurema. A jurema é uma planta baixa que dá um fruto amargo e de cheiro forte. Com os frutos e as folhas da jurema, e outros ingredientes, os Tabajara faziam uma bebida de efeito alucinógeno, que o pajé utilizava para realizar suas tarefas religiosas. O método de fabricação dessa bebida era um segredo. No romance de Alencar, a jovem Iracema tinha um papel sagrado na aldeia, que era ser a guardiã do segredo da jurema.
Pelo visto, boa parte da vida social dos Tabajara, assim como de outros povos indígenas, girava em torno da guerra. A guerra fazia parte da sua cultura, da sua identidade. Os Tabajara usavam um tipo de trombeta própria para convocar os seus homens para a luta, a inúbia. Ao partirem para a batalha, faziam grande alarido com suas vozes e bater de palmas e das armas. A esse alarido, sinal de alegria semelhante ao que usavam em ocasiões de festa, chamavam de pocema.
Era prática dos guerreiros carregarem um colar cujas contas eram dentes dos inimigos vencidos. Esse colar era para eles como um troféu, carregado orgulhosamente como um sinal de valentia. A força e a bravura dos homens eram muito valorizadas por aquela sociedade.
Ainda em relação com as práticas de guerra, um costume interessante registrado por Alencar é o de quebrar a flecha como demonstração da celebração da paz. Esse gesto podia ser usado para significar a paz entre aldeias inimigas ou entre guerreiros individuais. (ALENCAR)
Os escritores do Romantismo se esforçaram em ver nesse estado de guerra constante uma cultura de afirmação de força e de nobreza, tão heroica quanto a da cavalaria medieval. E nós não o negaremos. Deste lado ou do outro do Atlântico, cada forma de civilização tinha sua própria maneira de valorizar e idealizar a força, a bravura, a honra. Como dissemos no início, são dois modelos de civilização que aparentam ser muito diferentes; porém em ambos os casos se trata de culturas antigas e tradicionais. A Europa, que se considerava tão mais civilizada, estava então apenas no começo da ascenção do capitalismo, preservando ainda várias estruturas sociais medievais. Esse começo de capitalismo, ou seja, o chamado mercantilismo, é que veio perturbar drasticamente o modo de viver dos povos originários do Brasil.
Outra prática pacífica dos Tabajara era a importância que davam à hospitalidade. O hóspede era tratado como um enviado de Tupã para a aldeia. Vários cronistas registraram esse fato. Vários deles escreveram também sobre o costume de o visitante receber por companhia, inclusive sexual, as mais belas mulheres solteiras da aldeia.
A vida social da taba se desenrolava em torno da ocara. Todas as casas da aldeia estavam dispostas em círculo, e todas se abriam para o centro do círculo. Essa praça central era a ocara. Era ali que, em ocasiões felizes, acontecia a toriba, a festa, com muitos fogos acesos. Ali se ouvia o som do boré, nome dado à flauta de bambu feita pelos indígenas. (ALENCAR)
As casas da aldeia eram chamadas malocas. Eram moradias coletivas. Cada aldeia tinha entre quatro e sete malocas. Em cada maloca moravam de 20 a 40 famílias nucleares, perfazendo um total aproximado entre 50 a 200 pessoas em cada maloca. Dentro dela, cada família residia em certo setor celular da grande casa. Ali, as atividades costumavam ser realizadas coletivamente. Cada aspecto da vida cotidiana era compartilhado pela comunidade, tanto os meios de vida como as questões familiares.
A poliginia (ou seja, a poligamia em que o homem é quem tem mais de uma esposa) era prática comum. Cada homem costumava ter entre três e quatro esposas. Uma delas podia ser escolhida como a principal, e essa era chamada de temericô ête. E apesar do clima de ciúme natural em casamentos polígamos em qualquer civilização, as famílias nesse caso costumavam viver em relativa paz, por causa da cultura forte de respeito pelo marido e pelas pessoas mais velhas. Tanto o marido geralmente era mais velho do que as esposas, como as esposas mais antigas costumariam ser mais velhas que as mais recentes.
Os laços de parentesco entre as diferentes famílias também serviam para cimentar a solidariedade entre elas, como seria natural em comunidades pequenas. A família que desse uma de suas moças em casamento a um homem de outra esperaria que a outra família retribuísse a gentileza posteriormente, reforçando ainda mais os laços. Isso criava uma teia de relações que se renovava indefinidamente. (FERNANDES in HOLANDA, pp. 88-90) Esse mesmo tipo de formação de laço por meio de casamentos foi usado depois pelo indígenas para fazer acordos com os brancos no começo da colonização.
Outro traço interessante da cultura familiar era a noção de paternidade. Acreditava-se que os pais eram os únicos responsáveis pela geração dos filhos. Sendo assim, todos eram igualmente legítimos, independente de quem era sua mãe. O pai guardava resguardo quando do nascimento da criança, e participava de vários rituais para garantir o bem-estar dela. Por causa dessa noção, o pai era o responsável principal pelos filhos, por educá-los, discipliná-los, alimentá-los. Havia, por isso, forte afeição entre o pai e os filhos, e com os irmãos entre si. (FERNANDES in HOLANDA, pp. 90-91)
Comparamos as tabas com cidades. Porém, como dissemos, os Tabajara e os outros Tupi eram povos nômades. Além de adentrarem a mata para caçar e coletar, importantes bases da sua economia, eles precisavam se deslocar regularmente. De modo que para desempenharam essa atividade, tinham um conhecimento geográfico apropriado. Está registrado, por exemplo, que usavam a estrela polar como referência em suas viagens, já que essa permanece imóvel no céu. E, para terem mantimentos que levar nessas viagens, usavam a prática chamada mocáem, uma forma de assar a carne da caça nas labaredas, para que ela continuasse preservada por mais tempo.
Outro uso que se fazia da observação dos astros era como modo de calcular o tempo. O período lunar, ou seja, um mês, era notado pelos Tabajara. E eles sempre festejavam o nascimento da Lua, chamada de Jaci. Observavam também o nascimento anual das plêiades no leste, e também contavam esse ciclo. Contavam ainda os anos, por meio das safras de frutas. Relata-se que cada pessoa costumava guardar uma castanha de caju de cada safra anual como um modo de manter um registro da própria idade.
Os Tabajara também tinham ritos fúnebres próprios. Era seu costume sepultar os mortos em vasos, chamados camocim. A deferência pelos mortos costuma ser apontada pelos antropólogos como um sinal da existência de uma cultura e de uma civilização. (ALENCAR)
Como dissemos, hoje não há mais comunidades Tabajara em Pernambuco. Aqueles desse povo que não foram assimilados pela sociedade colonial se viram forçados a migrar. Hoje há grupos dessa etnia principalmente na Paraíba. Há algumas comunidades no Ceará, no Maranhão, e pelo menos uma no Piauí. A despeito do que se pensou no século XIX, ou seja, que as nações indígenas estavam desaparecendo, temos assistido a um revigoramento de muitas dessas comunidades, com culturas que devem preservar muito do que eram no passado remoto, mas que também passaram a incorporar em seus repertórios novos elementos devidos a trocas culturais ao longo dos últimos cinco séculos.
O costume mais famoso dos atuais Tabajara é o Toré. Trata-se de um ritual com música e dança. Essa manifestação cultural tem sido considerada uma referência de identidade para esse povo e para outros povos indígenas do Nordeste. Cantadas ao som de tambores e maracás, as canções do Toré retratam em versos o cotidiano dos indígenas, frequentemente incluindo referências à sua religião. Na verdade, trata-se de um ato de reverência a Tupã e a outras divindades associadas a elementos naturais. Ao falarem do cotidiano do povo, o tema que tende a ser comum nessas canções é a luta pela terra e a ligação dos indígenas com a natureza. Sobre a vestimenta e os adereços usados nessa cerimônia, diz-se:
Os indígenas que participam do ritual adornam o corpo com pinturas, cocares, tiaras, braceletes, colares, brincos, saiotes ou vestimentas de tradição; alguns adereços corporais são de uso específico do sexo feminino, como tiaras e brincos de penas; os cocares, braceletes, colares do sexo masculino. (BARCELLOS, b)
(Ritual do Toré. Créditos da imagem: BARCELLOS, b)

Como dissemos, não seria exato supor ou concluir que o atual ritual do Toré ocorra da mesma forma que os rituais Tabajara antes da chegada dos europeus. Há mesmo nele características de sincretismo. No entanto, temos aí a apresentação de uma cultura com algo do vigor e das formas de expressão originais. Podemos pelo menos imaginar que o sistema de símbolos do Toré e da atual cultura Tabajara - sua arte, sua pintura corporal, seu senso de ligação com a mata - guardam algo dos antigos costumes desse povo, algo do que havia antes da chegada dos homens brancos.
Embora as informações que citamos aqui sobre essa etnia sejam apenas fontes de suposição na reconstituição do passado, nos permitem vislumbrar algo do que era o modo de vida dessa linha de nossos ancestrais. Estamos contando aqui por partes a história de uma família. E ao legado que se reúne nesta história, se junta o passado dos antigos Tabajara.
Um dos primeiros contatos desse povo com os portugueses se deu, como mencionamos, na capitania de Pernambuco, no século XVI. Esse contato foi, obviamente, marcado de vieses, como seria de se esperar daquele século. No entanto, veio unir em aliança política e guerreira a semente de D. Afonso Sanches e a dos bravos Tabajara, em função da nova ocupação territorial. E fundamental para esta história que estamos contando, tão fundamental quanto a aliança guerreira e a ocupação territorial, foi certo encontro amoroso, providencial, que se tornou o mito fundador das antigas famílias do Nordeste.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALENCAR, José de. Iracema/Notas. Disponível em: https://pt.m.wikisource.org/wiki/Iracema/Notas . Acesso em: 23.11.2023
BARCELLOS, Eliane Silva de Farias. 
Nossa História. Disponível em: https://www.tabajarapb.com/historia . Acesso em: 26.11.2023, a
BARCELLOS, Eliane Silva de Farias. Ritual do Toré. Disponível em: https://www.tabajarapb.com/arte-e-cultura . Acesso em: 26.11.2023
CIPRO NETO, Pasquale. Qual é a forma correta de escrever nomes de etnias indígenas? Disponível em: https://m.cbn.globoradio.globo.com/amp/media/audio/294071/qual-e-forma-correta-de-escrever-nomes-de-etnias-i.htm . Acesso em: 29.11.2023
FERREIRA, Danillo. Ocupação pré-histórica de Pernambuco. Disponível em: https://concursopolicial.com.br/ocupacao-pre-historica-de-pernambuco/ . Acesso em: 23.11.2023
HOLANDA, Sérgio Buarque de (org.). A época colonial, v. 1: do descobrimento à expansão territorial. 15a. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007. (História geral da civilização brasileira; t. 1; v. 1)
PAGANO, Luiz. Tabajara. Disponível em: https://indigenasbrasileiros.blogspot.com/2016/04/tabajara.html?m=1.  Acesso em: 21.11.2023
PROFESSOR MEM COSTA. O Povo Brasileiro de Darcy Ribeiro - Matriz Tupi. YouTube, 27.05.2012. Disponível em: https://youtu.be/rQOPdiEdX24?si=AhVNfz4GBZSuXoES
SENADO FEDERAL. Indígena/etnia, in Manual de Comunicação da Secom. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/manualdecomunicacao/estilos/indio#:~:text=Os%20nomes%20de%20povos%20ind%C3%ADgenas,%2C%20os%20uaimiris%2C%20os%20xavantes. . Acesso em: 29.11.2023
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