O conto de Júlio e Eleonora - 4



Um conto de amor, castelos e alegoria



Decisão

Dias se passaram. Júlio estava mudado. Passara a andar sempre cabisbaixo, sempre muito triste. Fazia suas atividades sem empolgação. Não estudava mais por conta própria. Visivelmente, carregava um fardo, ainda que não o confiasse a ninguém. 
O abade notou a diferença no comportamento do rapaz. Quis intervir. Propôs conversar com o velho Oranius. Júlio dispensou essa alternativa. O abade pensava em falar com o velho mesmo assim. Mas, enfim, a ideia acabou se perdendo.
Depois de meditar vários dias, Júlio chegou a uma conclusão. Devia esquecer Eleonora. Era a coisa mais lógica a fazer. A visão noturna do anjo com certeza estava certa quanto a ser impossível a realização do seu querer. O esquecimento, o fim daquele sentimento nocivo, era a consequência natural de se perceber isso. A morte era drástica demais, mesmo naquela situação. Ele sufocaria suas impressões, mataria seu interesse pela moça, em vez de matar a si próprio. 
Daí em diante, com essa resolução em mente, o rapaz aguardava a próxima visita de Eleonora, decidido a resistir aos tentadores pensamentos que ela lhe fazia ter. E muito embora eu diga que eram pensamentos tentadores, eram puros, de uma inocência ingênua, como era tudo que se relacionava a ela. Júlio usaria o máximo de seu poder de autoconvencimento para escapar da aura boa que lhe inspirava a moça. 
Levou vários dias na leitura de tudo o que se referia à nulidade e inutilidade do amor romântico. Leu até convencer sua mente. Fez infindáveis orações, recorreu ao jejum sagrado, tudo em busca do autodomínio, da força necessária para escapar inteiro daquela sensação que lhe arrastava na presença dela, e até na lembrança ausente dela. Restava-lhe agora ver Eleonora, e observar que efeito vê-la teria sobre o coração próprio dele.
Não demorou a chegar o dia em que ela voltou ao convento. Ao ser informado da presença dela no lugar, Júlio tentou convencer a si próprio de que não tinha sentido um estremeço no peito. Encheu-se de coragem e determinação e foi, ao encontro dela.
Quando a viu, parecia, como sempre parecera, que a vida entrava pela primeira vez no mosteiro. Ela sorriu, com aquele sorriso irresistível, e disse: 
– O tempo demora tanto quando não venho aqui, irmão Júlio. Enfim chego ao nosso pequeno universo. Enfim posso vê-lo.
Como você bem pode deduzir, aquilo desmontou a serenidade que o pobre rapaz levara dias tentando construir. Eleonora lhe entrava pelos sentidos, invadia-os todos com seu aroma, sua voz serena, suas mãos quando eventualmente tocavam as dele entre as procuras de livros nas estantes. Entrava por seus sentidos e se instalava, fazia morada.
Júlio agiu como sempre agia durante as visitas da moça. Foi gentil e bondoso, como bom amigo apaixonado não confesso que era. Apenas uma pequena falta de brilho nos seus olhos teria sido notada por um observador mais astuto. Mas, como ele estava radiante em comparação com os dias que passara deprimido, ninguém chegou a notar mesmo que ele não estava bem. Só Eleonora lhe notou essa pequena perturbação; no entanto era uma perturbação tão sutil que ela não lhe deu devida atenção. Ademais, ela nem sequer estava perto de imaginar o que se passava na mente atormentada do rapaz. E mais ainda, em defesa da moça, de sutilezas de amor ela não entendia ainda nada; apreciava a companhia do rapaz, e nem remotamente lhe passava pela cabeça que houvesse algo mais do que isso acontecendo entre eles. Ninguém percebeu que aquela alegria era para ele uma sentença.
Aquela visita foi o golpe decisivo.
Aquela era a solução, a única possível para o amor que Júlio sentia. A adaga. Devia deixá-la penetrar seu coração. Devia aceitá-la, aceitar a morte. Morrer era a única forma de escapar daquele mal horrível, daquela separação imposta pela diferença social e pelo voto monástico. O rapaz não conseguia ter outro pensamento, dia e noite. E nem tinha força para afastá-lo. A mente sempre voltava para Eleonora, visão do céu, bênção. Eleonora com certeza era uma bênção. 
E, no entanto, querê-la era a maldição.
Até que Júlio chegou à conclusão. 
Era outra noite semelhante àquela, em que lhe aparecera a mulher angelical. Sentado no seu catre, o rapaz apurava bem os ouvidos, sondando o silêncio do mosteiro, procurando algum barulhinho, alguma evidência de que houvesse gente acordada. Todos deviam já estar dormindo. Era bem tarde da noite já. O silêncio era tão pesado que os mínimos barulhinhos do vento ou dos grilos já deixavam o rapaz sobressaltado. Mas, de fato, não havia quem notasse ou suspeitasse do que ele faria. Pelo menos não até pela manhã. 
Júlio deitou-se. Sua mão buscou na cabeceira do catre a lâmina fria da adaga – essa mão que estava tão fria quanto a própria lâmina. Tomou pelo cabo, com as duas mãos. Seu desespero era imenso. Quis chorar. Levantou a adaga uma, duas vezes tornando a baixá-la. Onde estava a coragem? Mas, enfim, resolveu-se. A hora avançava mais, tinha que ser agora, antes que chegasse o momento das orações que os monges fazem ainda de madrugada. Segurou novamente o cabo com ambas as mãos, ergueu-o esticando os braços por sobre o peito, assim deitado como estava, com a lâmina apontada para o lugar do coração. Fechou os olhos. Nunca vira instantes mais longos que aqueles. Por fim, puxou a adaga de uma vez.
A lâmina não tocou seu peito. De olhos fechados, Júlio sentiu duas fortes mãos que lhe seguravam uma cada braço. Abriu os olhos, numa confusão tremenda de pensamentos e sentimentos. Era um rapaz.

(Continua)

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