O conceito moderno de Estado como a entidade soberana sobre um determinado território e sua população é de tal modo natural para nós que pode parecer difícil imaginar um mundo em que esse arranjo social e de poder não existisse. Assim como acontece com outras instituições sociais e costumes, o Estado é um hábito longamente enraizado que apenas nos acostumamos a considerar como a realidade natural.
No entanto, antes da consolidação da ideia moderna de Estado, antes da formação das monarquias nacionais e absolutas, era outra a cara do poder e o modo como ele se organizava e se exteriorizava. E vale dizer que o nosso conceito de Estado nasceu na Europa, como derivação do fim do sistema feudal. E por esse motivo é que vamos buscar no sistema feudal algo que nos dê uma ideia do que era o mundo antes do advento do Estado moderno e sobre o significado de certas distinções sociais existentes durante a Idade Média.
Durante todo o período em que vigorou o sistema feudal, onde ele existiu, o poder não era exercido pela figura dos reis. Ou, na verdade, os reis exerciam poder, e muito, mas apenas indiretamente e em circunstâncias específicas. Explicamos.
A base do sistema feudal era a propriedade. O senhor feudal era o proprietário da terra e seu defensor. E isso, para o entendimento da época, significava que ele, como o senhor, o dono, era o responsável por manter a paz e a ordem em seus domínios. O que era seu cabia a ele governar. E isso cabia apenas a ele.
Dito de outro modo, o senhor do feudo era praticamente o seu soberano, o seu monarca. Era um reizinho em miniatura, a voz final nos assuntos debaixo de sua autoridade. Comparando-se com a estrutura do Estado moderno, poder-se-ia dizer que cada feudo era como um pequeno país – embora nem todos os feudos fossem realmente de pequena extensão. E seu senhor era seu chefe supremo.
Os títulos de nobreza na Idade Média eram indicativos da posição de cada um desses senhores na rede de poder do sistema feudal. Cada feudo tinha seu próprio grau de importância e relevância no cenário de sua região. Cada senhor pertencia a uma dinastia, cada uma com diferente nível de status e com ascendência ou mais ou menos distinta. Senhores mais poderosos eram duques ou condes. Senhores de pedaços de terra menores e menos influentes eram simples senhores ou barões. Na verdade, em uma postagem futura pretendemos falar mais detidamente a respeito dessa distinção dos barões e como esse título representou graus diferentes em momentos diferentes da História.
E quanto aos reis? O que esse título significava no contexto do feudalismo? Qual era e sobre o que era o poder dos reis?
O rei era também ele próprio um senhor feudal. A diferença era que seu nível de distinção era o mais alto disponível na hierarquia medieval – a não ser, talvez, pelo imperador do Sacro Império Romano-Germânico, mas isso é assunto para outra publicação. O rei era o topo no esquema de suserania e vassalagem, base das relações harmônicas entre os diferentes feudos.
A situação normal entre os nobres feudais era os laços de suserania e vassalagem. Cada um estava pronto para obedecer ao chamado daquele que fosse seu suserano, ou a convocar os reforços daqueles que eram seus vassalos. Esse hábito construía não exatamente uma teia, mas algo mais como uma pirâmide de obrigações, que culminava na figura todo-poderosa do rei, aquele que não devia obrigações a ninguém. O rei era o senhor feudal sem suserano.
Mas de que ordem eram as obrigações prestadas pelo vassalo ao seu suserano? Diferente do que talvez pensemos, não eram obrigações de ordem civil. Não havia uma constituição que vinculasse a ordem civil ao centro de poder estatal. Não havia leis nacionais. A ordem interna dos feudos era de interesse e responsabilidade de seu senhor, seu governante, e não do rei.
Sim, o rei era aquele de quem todos os nobres do reino eram vassalos. Mas os laços de suserania e vassalagem eram apenas de ordem militar. Os donos da terra eram guerreiros, deviam ser guerreiros. O Estado moderno se utiliza da força para a manutenção da ordem legal, e, na verdade, é a instituição que detém o monopólio legítimo da força. No mundo medieval, o governante, que era também o proprietário, precisava manter seus domínios sob seu controle. Era do seu interesse preservar a terra em seu poder. A terra era a riqueza maior, a fonte da economia e do poder, e, portanto, extremamente valiosa. E, na ausência de leis que protegessem sua propriedade dos outros pequenos reinos, cabia a esse rei em miniatura defender o que era seu. Ele mesmo teria que defender a sua terra e sua posição.
Por esse motivo os nobres medievais eram guerreiros. Como é um fato bem conhecido desde os nossos tempos de escola, na sociedade feudal o papel dos nobres era a defesa, era a atividade militar. Os nobres é que eram cavaleiros e eram a elite nas guerras. A vida dos homens da nobreza girava em torno de estar preparados para a guerra, mesmo que o mundo fosse talvez mais pacífico do que costumamos pensar sobre aquela época.
A hierarquia militar mantida pela vassalagem criava uma obrigação: No caso de surgir uma necessidade de ordem guerreira, os vassalos acorreriam ao chamado de seu suserano. Um duque não era governante para o feudo de seu vassalo. Teria sim o poder de convocar para a luta o vassalo e todos que sob este estivessem. Mas era só. E assim também se dava com os reis. Embora pudessem chamar à ação os reforços de seus duques e condes, não era o governante dos ducados e condados, onde prevalecia a lei de seu governante direto.
E era por terem tal grau de independência e terem eles mesmo muitos vassalos, que alguns poderosos senhores feudais, embora não fossem eles mesmos reis, bem poderiam ser corretamente referidos como príncipes. E, de fato, são referidos assim, tanto no passado como na historiografia atual.
Que duques e condes eram príncipes, tanto no título como na função atesta o historiador Thomas Asbridge ao narrar a época das Cruzadas. Em seu livro As Cruzadas (publicado no Brasil como um box), Asbridge explica o seguinte sobre o apoio dado para a Primeira Cruzada:
Apesar de nenhum rei ter se juntado à expedição – a maioria já estava às voltas com suas próprias maquinações políticas, o crème de la crème da cristandade latina tendia à empreitada. Membros da alta aristocracia da França, do oeste da Alemanha, dos Países Baixos, da Itália, da classe diretamente abaixo da realeza, que costumavam ter títulos de conde ou de duque e podiam, em alguns casos, até mesmo eclipsar o poder de reis. Certamente eles tinham um grau significativo de autoridade independente e, assim, enquanto grupo, podiam bem ser chamados de “príncipes”. Todas essas figuras de liderança comandavam seus próprios contingentes militares, mas também atraíram muitos bandos de seguidores mais livres e fluidos, baseados nos laços de nobreza e família, perpetuados pela ética comum ou por raízes linguísticas. (pp. 64-65)
Sim, esses nobres eram senhores de bem alta posição, e na prática eram independentes. Eram de fato monarcas, ainda que não tivessem o título de reis. No entanto, assim como o príncipe de Mônaco hoje ou o Grão-Duque de Luxemburgo, por exemplo, eram autênticos soberanos, de dignidade quase real.
Numa postagem anterior, este redator e fidalgo explorou o assunto sobre a dignidade de conde de seus antepassados e mostrou como é herdeiro dela também. E agora mostramos que os condes medievais eram na verdade príncipes, e não estavam num grau tão abaixo dos reis e príncipes como os condes modernos. Nos acostumamos a pensar na tradicional hierarquia dos títulos de nobreza (rei, duque, marquês, conde, visconde, barão), hierarquia essa consagrada no período dos reis absolutos, e, de fato, do Estado moderno. E, no entanto, esses nomes tinham significados bem diferentes, bem mais pujantes até, no período medieval.
Fica esclarecido assim o porquê de, algumas postagens atrás, termos dito que tínhamos a dignidade de príncipe. Realmente, se sou conde como meu antecessor Guido Guerra III Guidi, sou também príncipe. E que este também era em seu tempo referido como príncipe, mostrarei em uma próxima postagem.
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Atenciosamente,
Filipe Cavalcante
Referências que consultei:
ASBRIDGE, Thomas. A chegada dos cruzados. Tradução de Johann Heyss, Valter Lellis Siqueira. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2021. (As Cruzadas; vol 1)
POSAVSKI, Lucas. Diferença entre nobreza de sangue e de condecoração. YouTube, 15 de setembro de 2021. Disponível em: https://youtu.be/CzBf7bUTDG8 . Acesso em 15 de agosto de 2022
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