O conto de Júlio e Eleonora - 5

 

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Aquele susto foi cem vezes pior do que fora o de ver surgir a mulher angelical em sua cela. E isso precisamente por que nada mais fazia sentido naquele instante. Num sonho nada faz sentido, e é exatamente por isso que qualquer coisa simples pode se tornar aterrorizante num sonho desagradável. Naquele momento, Júlio tinha mais ou menos a sensação de um pesadelo, naquela noite pesada; sentia-se cansado física e mentalmente. O horror da perspectiva do que ele esteve para fazer o deixou extremamente extenuado. Era como estar acordado e consciente no interior do mais horrível dos pesadelos.
E de repente, aquilo. O rapaz debruçado sobre Júlio, segurando ambos os seus braços, era belo e imponente, como se fosse um grande senhor. Era visivelmente alguém não humano. Júlio viu-o terrível. A expressão do rapaz era severa, quase irritada, mas, ainda assim, como se qualquer coisa fosse pequena demais para deixá-lo irritado. Ele olhava para Júlio muito fixamente, com uma reprovação no rosto. Suas mãos seguravam muito vigorosamente os braços de Júlio. Aquilo, o suicídio, não iria acontecer.
Os braços do monge fraquejaram aos poucos, inevitavelmente. Não dava pra resistir àquelas mãos fortes. O intruso tomou de suas mãos a adaga e lançou-a ao chão. Ele sorriu, e seu sorriso encheu a cela de uma sensação boa, como a que se sente numa festa. Ele segurava as mãos de Júlio, e o ergueu para que ficasse sentado no catre. Nosso frade estava sem reação. Apenas deixava-se invadir por aquela quase euforia que o desconhecido irradiava. E havia qualquer coisa de muito conhecido naquela euforia.
– Cheguei a tempo – disse ele. – Foi por muito pouco.
Àquela altura, o monge já se sentia desperto do seu mórbido letargo. Qualquer anseio como a morte havia fugido totalmente de sua mente. Ainda assim, a dúvida lhe ficava. Não entendia o que estava se passando.
– Minha irmã quase foi a causa da sua perdição – continuou o rapaz. – Por muito pouco ela não conseguiu provocar o fim de um homem bom. E um homem bom com sentimentos sinceros!
Aquilo não esclarecia nada, e o semblante aliviado de Júlio era todo ele uma grande interrogação. O rapaz riu, como dando-se conta de que estava sendo bobo. E pôs-se a explicar.
– A mulher misteriosa que induziu você a tentar a morte. Ela é minha irmã.
– Então você também é um anjo? – atalhou nosso frade.
– Anjo!? – a cara de riso do rapaz era de quem encarava o ridículo. – Anjo? Essa é nova! – e, virando-se para o canto escuro do quarto onde anteriormente aparecera a mulher – É esse seu novo ardil, minha cara? Um tanto ousado, não?
Júlio olhou para o canto também, e a mulher estava lá, com cara de vergonha, de derrota. Ela não ousava encarar o rapaz. Parecia bem menos imponente agora, vencida por ele.
– Passemos às apresentações, meu caro Júlio. Aquela lá, minha irmã, não é anjo coisa nenhuma. Ela é a Paixão. Muito sentimental, ela. Só confunde os humanos. Muitas vezes ela se faz passar por mim, e muitas dessas muitas vezes, com consequências desastrosas. Foi o que quase aconteceu com você. – Enquanto falava ele brandia o dedo para o canto onde a mulher aparecera, porém ela não estava mais lá. – Ela é a Paixão. Eu sou o Amor. Em pessoa. E eu e você já nos conhecemos – e seu sorriso se tornou ainda mais largo e gentil.
Júlio tinha conhecimento de bastante coisa, por virtude dos livros que lera. E no momento era bobagem, mas ele achou que tinha que fazer esta objeção :
– Não é assim como você é que eu sempre soube ser o Amor. O Amor tem asas, usa arco e flechas, e tem corpo de menino e não de homem feito. – E dizia isso por que sabia ser assim a imagem do Cupido, o Amor personificado, conforme sempre lera em livros antigos e profundos. Até hoje o Amor é representado assim, na forma do Cupido, em mensagens que os enamorados trocam, como vocês bem sabem.
Era uma objeção bastante tola, mas o Amor teve que dar a explicação.
– Tolice! Tolice! Ora, vejam só! Um menino! Não meu caro. O Amor não é irracional como um menino. E imagine de que estrago seria capaz um menino com flechas! Coisa de loucos. Os gregos eram loucos.
E prosseguiu:
– Eu existo e você me conhece. Você ama Eleonora. Até esse ponto o que minha irmã disse é verdade. Mas fica aí. Há saída, meu caro, há saída. E eu estou aqui para isso. Levante-se.
O rapaz deu um puxão para que Júlio se levantasse. Júlio não sentiu o puxão; ao “levante-se”, se ergueu inevitavelmente. O rapaz empurrou o catre de Júlio como se aquilo não lhe custasse esforço nenhum. Quando o catre saiu do lugar, revelou um alçapão fechado no chão. O monge nunca vira aquele alçapão ali. Nem antes de a cama ser colocada ali.
– Vamos, meu caro. Eleonora corre perigo. É preciso agir rápido – disse o Amor. E, avançando para o alçapão, abriu-o. Olhou para Júlio em tom explicativo: – Os duendes fizeram provisões para nós. Costumam ser muito hospitaleiros.

Júlio estava espantadíssimo. Mas o rapaz Amor inspirava confiança e alegria, uma alegria serena e ainda assim capaz de arroubos. E ele foi. Desceu o alçapão, o Amor desceu atrás, fechou a portinhola. Estavam num túnel iluminado.


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