O conto de Júlio e Eleonora - 6

 

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Era como qualquer corredor comum, exceto pela ausência de janelas, e por que as paredes, o teto e o chão eram visivelmente de terra. Ao longo dele, tochas nas paredes iluminavam o caminho.
– Vamos, meu caro – disse o Amor, tomando a mão de Júlio. – É por aqui o caminho. – E tomaram uma das direções.
Enquanto andavam, o Amor ia explicando.
– Há alguns dias suspeitei que minha irmã tramava algo. Como eu já disse, ela costuma se fazer passar por mim. E ela faz estragos quando consegue isso, meu amigo. Muitas decisões irracionais, bobas, às vezes até trágicas são cometidas por influência dela. Tudo por que ela faz com que muitos pensem que sentem minha presença. E existe uma diferença muito nítida entre ela e eu. Quem não me conhece, porém, facilmente se engana.
– Mas você, rapaz – acrescentou olhando diretamente para Júlio durante esta só frase – você foi um desafio para ela. Os que amam de verdade, aqueles de quem eu sou companheiro, sempre são difíceis pra ela. O jeito é ela apelar pra conclusões precipitadas.
Como eu já disse, o rapaz Amor dava a impressão, pelo seu porte e jeito de olhar e falar, de ser um grande senhor. E de fato ele era, sobre um domínio, porém, num plano não material. Mas agora que Júlio não estava mais assustado terrificado, e sim assustado radiante, percebia toda essa imponência de um jeito gratificante. O Amor era um senhor a quem valia a pena se sujeitar, mesmo de vontade.
– Quando eu suspeitei que era sobre você que ela estava trabalhando – prosseguiu ele – pus os duendes em alerta. – E notando a cara de estranheza de Júlio explicou: – Eles são muitos na floresta de Colanco. Como eu disse, são um povo hospitaleiro e bondoso. Vivem por toda a floresta, escondidos dos olhos humanos. Moram em tocas, em árvores ocas, e coisas do tipo. Pedi a eles que me ajudassem com os preparativos para os dois resgates. O seu e o de Eleonora.
Júlio meio que acordou com a menção novamente de resgatar Eleonora. Resgatar de quê? Que perigo ela corria?
– Como eu lhe falei, a minha irmã, quando encontra alguém que ama de verdade, não tem como se passar por mim. E quando ela não tem como se passar por mim, recorre a tentar provocar sentimentos desesperados. Ela não desistiu de você ainda. Eu consegui evitar a sua perdição, que ela urdia há dias. Mas ela ainda tentará alguma coisa. E Eleonora corre risco. Precisamos alcançá-la antes da Paixão.
Júlio estava pasmo. Sem que a sensação que o Amor provocava se esvaísse nem por um pouco, uma angústia crescia nele, com uma inquietação, uma necessidade premente de agir.
– Que tipo de perigo Eleonora corre? O que sua irmã vai fazer contra ela?
– Ainda não sei. Espero que cheguemos antes de precisar descobrir.
Andaram bastante. Parecia que caminhavam há uma eternidade, as paredes terrosas sempre iguais, Júlio não tinha bem noção da passagem do tempo. Depois de um tempo, vez por outra havia uma luz frouxa vinda de algum ponto do teto; era a luz do dia, entrando no túnel por aberturas habilmente dispostas. Até que por fim o caminho acabou. O Amor apontou para a portinhola acima deles.
– É aqui que podemos fazer algo. – E ajudou Júlio a subir primeiro.
Júlio nunca estivera naquele lugar. Mas sabia perfeitamente que lugar era.
O local era uma pequena cidadela, rodeada de muralhas de pedra. O local onde emergira era um pouco escondido, de modo que podiam sair de um buraco no chão sem ser percebidos. Mas mesmo que saíssem em um local mais aberto, dificilmente teriam sido notados. As ruas da cidadela estavam desertas. O que era visível das ruas era de todo sombreado pela construção maior dentro das muralhas. Estavam no interior da fortaleza de Colanco, o castelo do conde.
Sem precisar ser puxado, o Amor saiu do alçapão e o fechou.
– Temo que algo já tenha acontecido – disse, olhando em volta, para a calmaria no interior da fortaleza. – Vamos lá, precisamos descobrir o que está ocorrendo.
Não caminharam muito pelas ruas até achar uma aglomeração. As pessoas pareciam espantadas, realmente algo fora do comum acontecera. Aproximaram-se para ouvir o burburinho.
– ... um sinal diabólico no chão. Foi isso o que eu soube de alguns serviçais do castelo.
– Será que ela fugiu?
– Mas por que ela fugiria? Não faz sentido o que você está dizendo.
– Isso foi obra do demônio, não há outra explicação. A marca é horrível, coisa de bruxaria!
– Ela era uma mulher santa, não tinha parte com bruxaria.
– De fato. Ela era quem da família mais ia ao mosteiro, inclusive.
– Não terá sido um milagre? Um arrebatamento?
O Amor entendeu o que tudo aquilo queria dizer. Sussurrou para Júlio:
– Venha. Ela já foi raptada pela minha irmã. Temos que descobrir que pista a Paixão deixou para você seguir. Vamos adentrar o castelo.
Afastaram-se da pequena multidão e foram em direção ao prédio central da fortaleza, a casa da família de senhores. E você não devia  se assustar com o fato de que eles não encontraram resistência para entrar. Com o rebuliço em que tudo estava, não havia guarda na casa. Ninguém nem percebeu a entrada deles, nem que os dois caminhavam pelos corredores. Subiram as escadarias, o Amor sabia o caminho. Foram até os aposentos de Eleonora.
Era um local graciosamente decorado. Não dava mais a impressão, pela arrumação dos panos de cama, que alguém tinha acabado de acordar. A condessa havia estado ali e chorado sobre as colchas da filha; criados da casa haviam revirado tudo, procurando algo que indicasse o que ocorrera; o conde, desorientado, esbravejara que Eleonora tinha que ser encontrada, que uma pista tinha que ser achada, que o culpado tinha que ser responsabilizado.
No entanto o Amor imediatamente puxou Júlio e lhe mostrou um desenho no chão, no meio do quarto. Era um círculo com uma chama no centro, pintado em vermelho vivo.
– O Fosso de Fogo – disse o Amor. – É para onde a minha irmã levou Eleonora. – E, depois de uma breve pausa: – Você precisa de comida e descanso, meu caro.
– Mas Eleonora!... Não, precisamos ir atrás dela imediatamente, você não vê?! Não é isso?
– Não, meu amigo – explicou o Amor, sempre calmo, quase impassível. – Não é assim que funciona. Note bem: A Paixão quer você, e não Eleonora. A donzela é isca. E, como isca, ela não corre perigo imediato. Não até você ser atraído. Há tempo para descanso e comida. Céus, você não dormiu esta noite! Está em cacos. Venha, vamos conseguir.
Júlio, de fato estava exausto, mas não havia dado por isso até que o rapaz Amor dissesse. A missão de resgatar Eleonora era a única coisa em que pensara durante todo o tempo em que haviam percorrido o túnel durante a madrugada. Em condições normais, sua imensa curiosidade natural o teria levado a fazer várias indagações sobre o povo da floresta, os duendes; a descoberta da existência deles era simplesmente magnífica! Tinham escritos, história registrada? Se não tinham, isso tinha que ser providenciado o mais rápido possível, pra salvaguardar a herança intelectual e histórica de tão singular raça. Nada disso entretanto sequer passara pela cabeça daquele homem de letras.
O Amor conduziu Júlio pelo caminho de volta para fora da casa, e igualmente não foram notados. O alvoroço ainda estava longe de acabar na fortaleza. As ruas distantes do foco das conversas ainda estavam igualmente desertas. Eles dois chegaram sem encontrar obstáculo ao mesmo lugar de onde tinham emergido do alçapão. Encontraram-no com facilidade. O Amor auxiliou o cansadíssimo Júlio a descer, desceu depois também, e fechou a portinhola acima de si.


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